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A urgência em sufocar a liberdade de expressão

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Urgência. Para o dicionário, substantivo alusivo à “necessidade de agir prontamente; pressa.” Para nossa Câmara dos Deputados, premência em prol dos interesses pessoais de caciques políticos, por mais esdrúxula e arriscada que seja a medida a ser tomada em um piscar de olhos.

Na noite do último dia 25, foi aprovado o regime de urgência para a votação do Projeto de Lei 2630/2020, eufemisticamente intitulado de Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, mas conhecido entre nós, defensores das liberdades individuais, como PL da Censura. A aprovação foi definida em resultado bem apertado, diga-se de passagem, por 238 votos favoráveis e 192 contrários, e que, sob uma ótica voltada à ampla participação social no debate público, não seria sequer passível de justificar tal premência.

Como todos assistimos, o Deputado Arthur Lira houve por bem aprovar o requerimento de urgência por maioria simples e via acordo de líderes – como se se tratasse de matéria relacionada a alguma calamidade pública ou ofensa efetiva ao estado democrático! -, escanteando, assim, norma expressa do Regimento Interno da Câmara, que condiciona votações em caráter de urgência a pedido formulado por dois terços dos membros da Câmara. Em atitude de viés autoritário, o Presidente da Casa, lançando mão de prerrogativa destinada a casos de excepcional gravidade, optou por ouvir lideranças alinhadas ao seu próprio posicionamento, e não a maioria absoluta dos eleitos pela população.

Outra peculiaridade residiu no fato de que o relator do projeto, Deputado Orlando Silva, não chegou a apresentar a versão final do texto, e, desse modo, atrelou os parlamentares a uma urgência em torno de tema ainda indefinido, tendo-os forçado a tomarem parte em uma votação para lá de kafkiana, pois referente a documento ao qual sequer tiveram acesso prévio. Situação análoga à de alguém que exige a emissão quase imediata de um cheque em branco por seus pares, o que nem de longe se coaduna com a transparência inerente ao processo legislativo democrático. Os frutos de uma legislatura são normas de cumprimento obrigatório por toda uma coletividade, e que, por isso mesmo, devem ser, ainda durante sua elaboração, examinadas e discutidas em todas as suas minúcias pelos mandatários, com plena reverberação nos círculos sociais. Sob pena da aprovação açodada de dispositivos capazes de contrariar interesses de parcela majoritária da população, como ocorre amiúde em regimes de força.

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Por fim, e não menos importante, horas antes da votação do regime de urgência, ambas as casas legislativas receberam a visita do Ministro do STF Alexandre de Moraes, que se dirigiu ao parlamento para entregar, em mão, suas “sugestões e contribuições” para o projeto. Tirou a toga por alguns instantes e atuou quase como dublê de legislador, embora não eleito, tendo se empenhado em auxiliar no incremento de uma lei ainda em confecção, e que, se aprovada, poderá eventualmente ter sua constitucionalidade questionada perante o próprio Moraes e seus colegas de tribunal. E, no advento de tal hipótese, como poderá Moraes, após ter deixado seu DNA no conteúdo da norma, ser tido como isento e imparcial para aferir a compatibilidade dos dispositivos desta com a nossa Constituição?

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Aquele ingresso do togado nas “casas do povo”, visível afronta ao princípio constitucional da independência entre os poderes, e passível até de caracterizar uma intimidação aos congressistas, como sustentado pelo Deputado Marcel Van Hatten, deveria figurar como um dos principais argumentos contrários à aprovação da urgência. Ora, a pressa manifestada por Moraes teria de mexer com os brios dos parlamentares, fazer com que estes se sentissem invadidos, em sua esfera de atribuições, por um membro do único poder não-eleito, e sinalizar aos mandatários que tamanha correria na análise do projeto acarretará comprometimentos institucionais ainda mais graves que a própria visita do togado naquela ocasião específica. Afinal, o tempo do direito não possui qualquer conexão com o da política, pois, enquanto aquele deve ser pautado pela celeridade máxima na resolução de litígios atuais e concretos, este deve observar cautela e prudência estritas para a elaboração de dispositivos aptos a regerem situações futuras e abstratas. E a promiscuidade entre mundos distintos só pode acarretar consequências nefastas, tanto para a esfera jurídica quanto para a legislativa.

Em síntese, sem um extenso debate popular, e sem a submissão ao crivo das comissões parlamentares, serão votadas, dentro de poucos dias, várias inovações tão nebulosas quanto perigosas, tais como: os conceitos indefinidos de “conteúdos ilegais”, a criação de um órgão de controle de conteúdo – autêntico “Ministério da Verdade” com seus protocolos burocráticos e confusos -, o permanente monitoramento de usuários de redes sociais, e a instituição de verdadeiras “normas penais em branco”, cujo teor, de tão impreciso, pode ensejar a punição de quaisquer condutas desafiadoras dos poderosos de plantão.

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Para o cidadão comum, as urgências são a geração de emprego e renda, o que deveria se refletir, nas esferas de mando, em prioridade absoluta a reformas como a tributária, a administrativa, e outras destinadas à atração de investimentos. No entanto, pelo visto, a urgência dos poderosos consiste na imposição de mordaça ao povo, de onde emana, ou deveria emanar todo o poder. Traição explícita por parte dos 238 deputados que, favoráveis à açodada votação, não souberam fazer jus aos seus mandatos.

Esperemos, e nos mobilizemos para que, no próximo dia 2 de maio, esse pavoroso cenário seja revertido por meio da rejeição ao projeto censor, e para que venham a ser retomados os debates sobre assuntos efetivamente urgentes para nossa sociedade.

*Por Katia Magalhães

Katia Magalhães é advogada (UFRJ), pós-graduada em Direito do Consumidor e da Concorrência pela FGV/RJ, coautora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, em comemoração pelos 100 Anos da Revista dos Tribunais. Atuante nas áreas de propriedade intelectual, seguros e de traduções jurídicas, e responsável pela coluna “Judiciário em Foco”, publicada pelo Instituto Liberal. Criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

Esse é um artigo de opinião e, não necessariamente, representa as ideias do Boletim da Liberdade e de seus editores.

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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