O Bolsonarismo para além de Bolsonaro: como a população valida a escalada do autoritarismo em nosso país - Coluna

O Bolsonarismo para além de Bolsonaro: como a população valida a escalada do autoritarismo em nosso país

24.06.2022 08:30

O conceito de bolsonarismo, embora amplamente debatido pela população em geral, não tem ainda um significado consensual. A maioria dos brasileiros parece equivaler o bolsonarismo à base eleitoral de Bolsonaro, o que tem se demonstrado uma concepção insuficiente para a complexidade do tema.

O descompasso entre tais percepções deve-se ao fato de que qualquer pesquisa demanda tempo para que consiga caracterizar, discutir e disseminar suas análises por meio de metodologias científicas, sendo o próprio bolsonarismo bastante recente como objeto de investigação. Contudo, desde 2020, diferentes áreas do saber têm apresentado, por meio de produções bibliográficas, um acervo consistente de ideias que pensam o bolsonarismo para além de um rótulo ou da simples relação de político-eleitor. Dentre os pesquisadores do tema pode-se citar: João Cezar de Castro Rocha (professor titular de Literatura Comparada na UERJ), Marina Basso Lacerda (pós-doutoranda em Ciência Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP), Adalberto Cardoso (professor de sociologia do IESP-UERJ), Lilia Schwarcz (professora de Antropologia da USP), Marcos Nobre (professor de Filosofia da Unicamp, Heloisa Starling (professora titular de História da UFMG), Miguel Lago (diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde e professor na Universidade Columbia) e Newton Bignotto (professor titular aposentado de Filosofia da UFMG), entre outros.

A partir das pesquisas publicadas pode-se entender o bolsonarismo como um movimento ideológico, cujo discurso encontra ressonância em pautas neopentecostais e militaristas. Apesar de Bolsonaro ser a liderança que hoje canaliza e comanda a escalada do movimento, seu fortalecimento não depende apenas do eleitorado do presidente, mas de diferentes agentes políticos que reproduzem a agenda bolsonarista na rotina do debate político. Esses agentes políticos representam os anseios de uma base de apoio que compartilha de visões de mundo muito próximas e expressas em narrativas extremistas e homogêneas e que se perpetuarão no cenário político brasileiro mesmo que Bolsonaro não esteja mais no poder. Essas visões de mundo podem ser condensadas em cinco principais características:

1. Anti-esquerdismo: o movimento bolsonarista enxerga partidários da esquerda como elementos que devem ser extirpados do “processo democrático”, desempenhando o papel de “inimigo comum” para diferentes grupos. A criminalização do comunismo – que ninguém debate desde a Guerra Fria – voltou a ser discutida, disseminando-se o infundado medo de uma “invasão comunista”, que não se baseia no contexto político real, mas em teorias conspiratórias.

2. Nacionalismo exacerbado: o uso sistemático de bandeiras do Brasil e das camisas da CBF pelo bolsonarismo demonstra a apropriação de símbolos nacionais, na tentativa de se apropriar por contiguidade do ideário do que é ser brasileiro. Segundo esta visão de cidadania, não há espaço para pautas das minorias, como mulheres, negros, indígenas e LGBT. Aqueles que militam por essas causas são acusados de dividirem a nação, que seria um coletivo homogêneo pautado por uma determinada agenda de costumes. Aqui, aqueles ameaçam essa homogeneidade devem ser combatidos como se combatem os criminosos.

3. Negacionismo: a ideologia bolsonarista investe recorrentemente no questionamento dos enunciados científicos. A máscara funciona contra o COVID? A vacina é eficaz? A eleição é segura? A pesquisa eleitoral funciona? É claro que qualquer tópico pode e deve ser questionado, desde que tais reflexões sejam respaldadas por princípios racionais. Contudo, no movimento bolsonarista, essas dúvidas não buscam qualificar conhecimentos já consolidados: elas são disseminadas com o intuito de trazer insegurança, sem qualquer validação no meio científico e em oposição às práticas adotadas internacionalmente.

4. Extremismo e ataque às instituições democráticas: o discurso extremista permeia toda causa bolsonarista. A crítica ao funcionamento do Estado, por exemplo, facilmente se transforma em discurso de ódio contra o servidor público, acusado de ser preguiçoso e corrupto ou de não ter chegado ali por méritos próprios. Já a crítica a jornalistas ou a meios de comunicação tendenciosos logo se generalizam como crítica à imprensa, que, de forma abstrata, é vinculada à manipulação de massa em favor de interesses privados. Também decisões controversas do STF são usadas como justificativa para que se exija nada menos do que o fim da corte.

5. Banalização da barbárie: O discurso violento é banalizado pelos bolsonaristas. É bastante comum ver essa militância defendendo chacinas em favelas, a descriminalização do assassinato de “bandidos” (assim julgados sem o devido processo legal), a banalização da tortura do período ditatorial e a ridicularização da luta contra o assédio moral e sexual de que são vítimas as mulheres.

Esses cinco pilares característicos da ideologia bolsonarista revelam um projeto neofascista de intolerância com a divergência e autoritarismo político e social. Tais pontos são organizados em uma agenda anti-civilizatória contra os direitos humanos, ambientais, sociais, civis e políticos. Sabe-se que onde ideologias de escopo extremista prosperaram, foram paridos regimes autoritários (Filipinas, Turquia e Hungria). Esse destino está no DNA do bolsonarismo.

Do mesmo modo que nos perguntamos como milhões de alemães aceitaram o nazismo ou milhões de italianos aceitaram o fascismo, também devemos nos perguntar por que milhões de brasileiros aceitam o bolsonarismo. O fato é que a violência dos regimes autoritários não se impõe sobre todos de forma igual, embora a agressão a determinados grupos ou instituições tornem todos os cidadãos vulneráveis a arbitrariedades. Assim, a maioria que se sente protegida das práticas violentas dos regimes autoritários se cala ou permanece indiferente, respaldando a consolidação de tais regimes, sem perceber que seus próprios direitos estão sendo cassados.

É preciso ressaltar que nem todo bolsonarista adere integralmente a todas a pautas da mesma forma. Além disso, nem todo bolsonarista racionaliza sua participação na construção de um projeto autoritário, a maioria adere por meio de um procedimento instintivo ao defender e reforçar as pautas da ideologia mesmo sem conhecê-la de forma organizada. Contudo, é essa militância que sustenta a instituição do projeto autoritário, pois aqueles que dão eco aos pilares ideológicos do bolsonarismo acabam por validar uma base de apoio ao projeto autoritário de Bolsonaro. Por isso é tão importante disseminar a construção teórica por trás da ideologia, na esperança de que seus militantes nela se reconheçam e promovam uma reflexão e uma possível – necessária – revisão de postura.

 Foto: Isac Nóbrega/PR

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