Romance aprisionado - Coluna

Romance aprisionado

17.03.2022 06:24

*Guilherme Wolf

Em fevereiro de 1961, três oficiais da KGB adentram um pequeno aparamento em Moscou.

Não era raro escritores irem para a cadeia, para o exílio, ou serem executados na União Soviética.

Dessa vez, porém, não prenderam o autor, mas a própria obra: “Vida e Destino”.

Vassili Grossman, judeu ucraniano, passara dez anos escrevendo “Vida e Destino”, livro em que retrata sua experiência como jornalista em campo na Segunda Guerra e no qual denuncia as semelhanças entre o nazismo e o stalinismo, em especial no antissemitismo de ambos os regimes.

Textos datilografados, manuscritos, esboços e fitas da máquina de escrever – tudo foi apreendido.

Grossman, que passara uma década escrevendo o livro, morreu sem vê-lo publicado.

Mais duas décadas foram necessárias para sua publicação. Mais três, por fim, para a obra ser libertada pelo serviço secreto da Rússia.

Os últimos manuscritos foram liberados em 2013, sendo o livro original considerado o último preso político da era soviética.

Para alguns críticos, a conjunção “e” de “Vida e Destino” não seria aditiva, mas adversativa. Vida, no romance, seria sinônimo de liberdade, enquanto Destino representa o inevitável, a privação da liberdade, o Estado, a morte.

Destino, uma força irrefreável, parece ser o que guiou esse grande romance aprisionado até sua libertação, cinquenta anos depois.

Talvez sua censura explique parcialmente o aprisionamento de alguns em um idealismo romântico com o socialismo.

Hannah Arendt, George Orwell e Vassili Grossman são alguns bons autores que evidenciaram as semelhanças entre nazismo e socialismo – inclusive no seu antissemitismo.

Na realidade prática, distante do idealismo, Grossman arriscou a própria vida para ver seu livro publicado. Essa obstinação o levou a afirmar:

“A maior tragédia de nossa época é não ouvirmos nossa própria consciência. Nós não dizemos o que pensamos. Nós sentimos uma coisa e dizemos outra.”

A tragédia de nossa época, arrisco dizer, é ouvirmos demais nossa própria consciência, dizermos tudo que pensamos e sentimos, mas refletindo pouco acerca do que é dito e de sua coerência.

Pois, se formos coerentes, o cancelamento de um famoso que defende a existência de um partido nazista no Brasil nos levaria a muitos outros cancelamentos – dos que atenuam outras formas de totalitarismo.

*Guilherme Wolf é associado ao IEE.

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