Por Luciano Andreotti
O ano de 2023 marcou um ponto de inflexão na trajetória das Polícias Civis no Brasil. A promulgação da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (LONPC – Lei 14.735/2023) instituiu, pela primeira vez, um marco legal de abrangência nacional voltado à padronização e à modernização das estruturas e métodos de trabalho dessas corporações. Um dos elementos mais significativos da nova legislação é a unificação dos cargos da base, abolindo a divisão tradicional entre Escrivães, Agentes, Investigadores, Inspetores e outras denominações regionais, criando uma identidade funcional única e coesa.
Essa mudança tem como finalidade superar um modelo fragmentado e desarticulado, herança de uma lógica burocrática ultrapassada. A unificação propõe coesão organizacional, identidade nacional para a carreira, modernização de processos investigativos e a superação de divisões artificiais de tarefas que, até então, comprometiam a eficiência e a continuidade das investigações.
O taylorismo, desenvolvido por Frederick Taylor no final do século XIX, preconiza a divisão rigorosa das tarefas, a especialização extrema e a separação entre o planejamento e a execução. Esse modelo influenciou diretamente o fordismo, aplicado nas linhas de montagem da Ford Motor Company, onde o trabalho se tornou ainda mais mecanizado, repetitivo e compartimentalizado, com trabalhadores realizando funções únicas e previamente determinadas, em ritmo industrial.
Aplicado à investigação policial, o modelo toyotista permite que o profissional acompanhe todas as etapas do inquérito, desde o registro até o relatório final ou indiciamento.
Com a unificação dos cargos promovida pela nova Lei Orgânica, um mesmo servidor poderá redigir peças, conduzir diligências, analisar provas e construir uma linha investigativa de forma coesa e com continuidade, sem a ruptura explicada anteriormente. Isso propicia uma compreensão plena dos casos, maior envolvimento com o resultado e, sobretudo, mais eficiência e celeridade: é justamente esse o espírito da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis.
No modelo toyotista, os trabalhadores não estão presos a uma única função repetitiva e mecânica, desconectada de todas as outras fases e processos de produção.
No exemplo de uma fábrica de veículos, por exemplo, em dada semana o trabalhador pode estar na montagem da carroceria; noutra, na testagem de vedação; em uma terceira, no encaixe do motor ou na organização dos veículos no pátio. Essa rotatividade evita a exaustão mental e física causada pela repetição contínua, promove o aprendizado integral de todo o processo e amplia a responsabilidade individual pela qualidade do produto final. Caso ocorra uma falha, é possível que na semana seguinte o trabalhador esteja na posição de quem fora prejudicado — promovendo uma cultura de corresponsabilidade. Além disso, os profissionais podem ser alocados também em suas funções que mais se identificam e são mais produtivos, mas não condenados a estagnação.
O novo modelo fortalece o inquérito policial, trazendo todos os policiais civis para atuar diretamente na investigação, atuando do começo ao fim da apuração, evitando a perda de elementos probatórios e informações que possam levar à autoria e materialidade dos crimes, decorrentes da quebra de vínculo dos atores com a investigação e a ruptura no fluxo de informações, como ocorre atualmente.
Iniciaremos assim, o fim do ranço cartorário e burocrático que temos, o que levará as nossas Polícias Civis a um processo orgânico de desburocratização e modernização, possibilitando a entrega de melhores resultados à população.
O espírito da nova Lei Orgânica Nacional é justamente romper com essa lógica arcaica. A investigação policial não é uma linha de montagem mecânica; ela exige dinamismo, criatividade, senso crítico e conhecimento profundo do caso. A segmentação excessiva destrói essas qualidades. O modelo toyotista, por outro lado, as potencializa.
Além disso, tal reestruturação trará a otimização da operacionalidade das polícias civis, simplificando a estrutura caótica de cargos que temos atualmente; facilitando a gestão de pessoal e recursos humanos; e reduzindo custos administrativos ao simplificar processos.
Teremos a facilidade administrativa de apenas um único concurso público para a base, minimizando a migração entre cargos que tanto onera a máquina pública. Teremos um cargo mais robusto com maior complexidade, o que levará a uma inevitável valorização da instituição e de todos os membros da Polícia Civil. Corrigiremos injustiças históricas com a igualdade funcional. Além disso, teremos simplificação e redução do número de sindicatos, identidade e padronização nacional de estrutura básica. Por fim, a frequente judicialização envolvendo alegações de “prática das mesmas funções com salários diferentes” terá fim. Ou seja, com a unificação dos cargos básicos haverá expressiva redução de processos judiciais que se acumulam e tanto oneram a máquina pública, além de acabar com disputadas internas que só prejudicam a instituição, refletindo no péssimo serviço oferecido à população.
Panorama da Implementação: Estados que Avançam na Unificação
Até abril de 2025, seis estados brasileiros já haviam concretizado a modernização com a unificação dos cargos da base em suas Polícias Civis, eliminando a coexistência de múltiplos cargos da carreira policial: Sergipe, Espírito Santo, Ceará e Tocantins estão com a unificação 100% concluída e operam em plena consonância com a Lei Orgânica Nacional. Rio de Janeiro e Paraná também realizaram a unificação, porém ainda precisam enfrentar alguns ajustes.
Outros estados já estão em estágios avançados na transição, com grupos de trabalho atuando na adaptação de suas estruturas: Santa Catarina, Piauí, Pará, Alagoas, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Paraíba.
No caso de São Paulo, a Polícia Civil apresentou um esboço de minuta que contraria frontalmente os princípios da nova Lei Orgânica, propondo a manutenção de estruturas obsoletas. No entanto, até o momento, não houve publicação de texto definitivo.
Os demais estados estão em fase inicial de adequação ou ainda não constituíram grupos formais de trabalho para planejar a transição.
Consequências políticas e jurídicas da não observância da lei nacional
Não ter consenso agora não justifica rasgar, ignorar ou selecionar somente aquilo que interessa de uma lei já aprovada e que deve ser respeitada. “Consenso é a negação da liderança”, diria Margaret Thatcher. Se se está sempre perseguindo consenso, não se é um líder. O líder cria o consenso, não o segue, sob pena de paralisia. O líder faz o que é certo e não o que grupos de pressão dizem.
É lamentável obervar que, em todas as reformas administrativas ou reestruturações de instituições públicas ou de cargos, existe sempre resistência infundada por parte de alguns servidores para que elas não ocorram. Além de interesses escusos, existe uma mentalidade tacanha, típica de países subdesenvolvidos, em que há completa inversão da essência do que é ser um SERVIDOR PÚBLICO. Enquanto em países com instituições robustas o agente público tem como premissa servir ao público, no Brasil a mentalidade é inversa. O concurso público é encarado como uma gincana que serve para a conquista de privilégios, para que o Estado (sociedade) sirva aos indivíduos que os “conquistaram” por meio de uma avaliação escrita. Ou seja, de acordo com essa mentalidade, a instituição deve sempre permanecer estática, parada nos moldes do status em que os indivíduos aprovados ingressaram, para que a estrutura continue os servindo.Afinal, tudo gira em torno daquela classe de servidores e não do interesse da sociedade ou da instituição como um todo. “Como ousam mudar as coisas e deixá-las diferentes daquilo que EU recebi quando me apoderei do meu cargo?”, pensam parte dos servidores que resistem.
Do ponto de vista jurídico, qualquer violação à LONPC será judicializada, a exemplo do Estado de MG que publicou edital para concurso diverso ao cargo de Oficial Investigador, fazendo com que a justiça suspendesse o certame e posteriormente permitisse sua continuidade, condicionada à nomeação apenas após decisão de mérito da ação, o que gerou e ainda irá gerar graves problemas judiciais que pode levar anos para se resolver.
Do ponto de vista político, os governos que optarem por violar as normas gerais apresentadas na lei nacional irão enfrentar judicializações, ataques de opositores e de apoiadores que enxergaram a modernização que a lei traz, além de serem expostos como fracos por cederem a pressões classistas e perderem a janela de oportunidade que se apresenta, sem contar no constrangimento de ter que defender estruturas arcaicas frente ao avanço de outros Estados que já estão se adequando da maneira correta. A manutenção do ultrapassado, das injustiças históricas que existem entre os cargos, trará enorme desgaste ao governo, pois a maior parte da base da polícia deseja essas mudanças que, caso não ocorram, poderão gerar revoltas que afetarão gravemente o próprio funcionamento da instituição. Isso tudo sem falar que a falta de um padrão mínimo nacional inviabilizará outros pontos da lei, como, por exemplo, a permuta interestadual entre policiais civis. Toda grande mudança trará desgastes. Caberá ao governo de ocasião escolher: ter o desgaste fazendo o certo ou tê-lo fazendo o errado.
Considerações Finais
A consolidação desse novo modelo exige coragem política, enfrentamento de lobbies e interesses classistas escusos, que querem manter o velho sistema ou, no máaximo, uma transição conservadora, ou seja, gradual e ponderada.