Por Anne Dias*
Ontem, ocorreu o primeiro, e talvez único, debate entre Kamala Harris e Donald Trump. As expectativas eram altas, visto que, embora debates presidenciais raramente mudam o curso de uma eleição, o último foi tão decisivo que levou à desistência de Joe Biden como candidato, por conta de sua péssima performance. Mas dessa vez, o cenário foi diferente. Acostumado a enfrentar adversários mais fracos, Trump encontrou dificuldades neste debate para se manter à frente na disputa, tendo que lidar com uma Kamala Harris mais preparada e assertiva, o que complica sua permanência na liderança da disputa.
A economia é um tema especialmente delicado para Kamala Harris, dado o atual cenário econômico do país, com inflação alta e problemas estruturais no setor de habitação. Por isso, a democrata dedicou uma parte significativa do debate para se justificar sobre o tema, falando por cerca de seis minutos exclusivamente sobre economia. Nesse contexto, Trump tentou posicioná-la como uma candidata de extrema esquerda, quando acusou de ser marxista, mencionou que seu pai foi professor de economia marxista, e criticou seu plano econômico.
Vale lembrar que Kamala Harris sempre teve suas visões orientadas por ideais de esquerda. Em 2019, a organização GovTrack a classificou como a senadora com o histórico legislativo mais à esquerda daquele ano, com base em suas co-participações de projetos de lei. Assim, é evidente que essa seria uma das estratégias de Trump durante o debate: tentar vinculá-la à extrema esquerda para enfraquecer seu apoio entre os eleitores moderados.
Outro ponto é que Kamala Harris já defende medidas econômicas consideradas polêmicas, como o congelamento de preços e a aplicação de impostos mais altos para os mais ricos. Durante o debate, ela criticou Trump, alegando que os cortes de impostos propostos por ele beneficiaram apenas ‘milionários e grandes corporações’
Já o Trump falou muito sobre imigração (4min e 40s), um assunto no qual ele tem bastante facilidade, já que é um dos pilares de sua campanha. O tom foi bem acusatório, com Trump afirmando que os crimes nos EUA estão aumentando por conta dos imigrantes e acusando Kamala de querer transformar os EUA em uma ‘Venezuela’. Além disso, ele disse que os índices de criminalidade na América Latina estão reduzindo porque os criminosos estão indo para os EUA, o que, claro, não é verdade.
Harris foi questionada sobre suas mudanças de posição em temas importantes, como o fracking, uma técnica de extração de petróleo e gás natural, e o controle de armas. Inicialmente, ela defendia a proibição total do fracking, mas agora sua postura mudou, adotando uma visão mais moderada, defendendo regulamentações rígidas em vez de um banimento. No tema do controle de armas, Harris reafirmou seu apoio a políticas mais restritivas, mas admitiu que ela própria possui armas. Essas inconsistências podem ter gerado dúvidas em parte do público.
E por fim, outro assunto que tem gerado muita polêmica durante essas eleições é o aborto. Kamala manteve seu posicionamento progressista de que a mulher deve ter o direito de abortar quando desejar. Já Trump reafirmou sua posição de que cabe aos estados tomarem essa decisão.
Ele destacou seu papel na derrubada do caso Roe v. Wade, afirmando que realizou um ‘grande serviço’ ao devolver a questão do aborto para os estados, permitindo que os eleitores decidam sobre as leis de aborto em nível estadual. Além disso, acusou os democratas de apoiarem o aborto até o nono mês, e afirmou que, segundo seu entendimento, o candidato a vice-presidente de Kamala, Tim Walz, apoia a ‘execução de bebês’ após o nascimento.
Temas como China, Rússia e Oriente Médio também foram destacados durante o debate, com Trump se posicionando como a solução para os principais conflitos internacionais. Ele aproveitou para questionar Harris sobre sua falta de atuação nesses cenários durante seu mandato, desafiando-a a explicar como promete adotar uma abordagem diferente nas negociações diplomáticas daqui em diante.
O debate foi caracterizado, em resumo, por um nível elevado de acusações pessoais, interrupções frequentes e posturas inadequadas para um evento de tamanha relevância. Kamala Harris utilizou 44% de seu tempo focada em ataques a Trump, enquanto ele destinou 29% de sua participação a críticas à sua adversária. O desempenho de Trump foi inferior ao esperado, especialmente considerando o resultado das pesquisas que o colocam com uma margem pequena em frente a Harris. Ele precisava de uma performance mais convincente para assegurar sua liderança. Trump subestimou o confronto, possivelmente acreditando que seria semelhante ao seu debate anterior contra Biden, o que claramente não se confirmou.
*Anne Dias é presidente do LOLA Brasil e diretora do programa de Núcleos do LOLA Internacional (Ladies of Liberty Alliance)