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Segue não sendo tarde demais?

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Por Anderson Bertarello*

Era junho de 2024, quando me voluntariei a escrever novamente uma coluna para o Boletim da Liberdade. Devido ao número de inscritos no Instituto de Estudos Empresariais (IEE) para escrever a coluna, acabei ficando com a incumbência de redigir o texto no final de agosto e início de setembro, seis meses após a minha outra publicação neste mesmo espaço.

Pensei que talvez pudesse escrever sobre outro tema que não os avanços do Judiciário sobre a liberdade de expressão e a interferência nos demais poderes, em desrespeito ao devido processo legal. Infelizmente a primazia da realidade se faz necessária, visto que os mesmos tópicos continuam em voga, porém com elementos que tornam cada vez mais pitoresco o contexto, digno de uma história kafkiana com camadas de uma distopia orwelliana de censura.

Franz Kafka, na obra “O Processo”, publicada em 1925, narra a história de Josef K., um funcionário bancário de alta posição que é subitamente preso em sua própria casa por um crime não especificado e, embora nunca seja informado do crime que supostamente cometeu, é forçado a participar de um processo legal interminável e absurdo. A obra explora a luta de Josef contra um sistema judicial opaco e ilógico, num mundo em que a burocracia é esmagadora, desumanizante e desprovida de qualquer lógica ou justiça. O tribunal, por sua vez, é uma entidade distante e quase mítica, cuja função é mais a de oprimir e desorientar do que de administrar justiça. A culpa e a condenação são inevitáveis, culminando no fim trágico do protagonista, que é executado de maneira brutal e sem resistência, como uma facada no peito, depois de suas últimas palavras: “Como um cão”.

Já George Orwell, no livro “1984”, narra uma sociedade totalitária, a Oceania, onde o Partido controla todos os aspectos da vida dos cidadãos. A sociedade é constantemente vigiada por meio de câmeras e dispositivos de escuta, através das teletelas, e a história, a linguagem e até mesmo os pensamentos são manipulados para garantir a lealdade ao Partido. O protagonista, Winston Smith, trabalha no Ministério da Verdade, alterando registros históricos para estarem alinhados com a propaganda do Partido. Winston é um homem insatisfeito com sua vida e que inicia um romance secreto com Julia, uma colega de trabalho que também despreza o Partido, e juntos, eles buscam formas de resistir ao controle do Grande Irmão, sempre tendo que fugir da “Polícia do Pensamento”, que acaba limitando o controle do pensamento também por meio da “Novilíngua” do “duplipensar”. Winston e Julia são traídos, presos e brutalmente torturados no Ministério do Amor, onde Winston é submetido a lavagem cerebral e reeducação para amar o Grande Irmão. O livro termina com Winston completamente subjugado, aceitando e amando o Grande Irmão, com sua liberdade e individualidade totalmente destruídas e abandando seu amor por Julia.

No Brasil, os inúmeros casos já noticiados à exaustão, especialmente por veículos não ligados à mídia tradicional (mídia esta que em muitos casos mais se assemelha a uma assessoria de imprensa do governo federal do que a uma mídia independente e supostamente “isenta”), já seriam elementos para um paralelo entre a realidade distópica de Kafka e nosso país. Os últimos casos, entretanto, divulgados em agosto de 2024, são um potencializador e um alerta maior para todos os defensores da liberdade sobre os perigos que corremos.

Com uma reportagem da Folha de S. Paulo intitulada “Moraes usou TSE fora do rito para investigar bolsonaristas, revelam mensagens”, Glenn Greenwald, até pouco atrás um dos personagens favoritos da esquerda brasileira pelas denúncias contra a Lava Jato que auxiliaram para seu fim e eleição do atual presidente, episódio que ficou conhecido como “Vaza Jato”, divulgou que, ao longo das eleições de 2022 e após, membros do gabinete do ministro Alexandre de Moraes teriam investigado apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e colunistas políticos de direita com base em relatórios solicitados informalmente, via WhatsApp, à Justiça Eleitoral no âmbito do inquérito das fake News, usando o setor de combate à desinformação (a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED)). Os alvos escolhidos sofreram bloqueios de redes sociais, apreensão de passaportes, intimações para depoimento à PF, entre outras medidas. O Inquérito 4781, conhecido como “Inquérito das Fake News”, já era um acúmulo de absurdos e abusos: abertura de ofício pelo próprio STF, ausência de especificidades, juízes que são réus e promotores, processos sigilosos sem que advogados dos acusados consigam acessos aos autos processuais, prisões mesmo sem provas, inúmeras medidas coercitivas em um inquérito sem fim, entre outros. Porém, com o advento das denúncias de Glenn, a história ganhou mais requintes de distopia kafkaniana, pois, além dos fatos expostos, a reação do ministro foi a de mandar investigar, bem como ser o responsável por analisar os vazamentos do seu antigo auxiliar em um processo que corre também em sigilo. Paralelamente a tudo isso, diversas censuras, inclusive uma intimação completamente estapafúrdia do ministro para Elon Musk, que nem sequer CEO do X é, via redes sociais, indicar um novo representante do X no Brasil, ameaçando fechar a rede aqui.

Porém, após tantos pontos que nos remetem a obras de ficção, resta a pergunta: o que nós, defensores e amantes da liberdade, podemos fazer para não vivermos “como um cão”?  Precisamos viver em eterna vigilância, como diria Thomas Jefferson, e seguir apoiando os institutos, meios de comunicação e pensadores que apoiem nossas ideias, seja através de participação ativa em discussões e debates, seja com compra de livros, assinaturas, com o objetivo de aumentar a exposição das nossas ideias. Também é importante que atuemos na base, em escolas e universidades, para ajudarmos a formar o pensamento desde cedo. Para isso, também, fica o desafio de pensarmos em como nos comunicarmos com esse público, como “furar a bolha”. Além disso, em época de eleição, é sempre importante também pressionarmos os candidatos para suas agendas e pautas estarem voltadas para nossas ideias – não só os “já convertidos”, mas também políticos que não estejam 100% alinhados, porém, com cujas ideias podemos comungar. Precisamos também apoiar e cuidar de quem esteve sempre ao nosso lado no campo de batalha da liberdade, tendo cuidado com pessoas que oportunisticamente nos apoiam, todavia, com o desafio de que isso não vire empecilho para alianças estratégicas ou leve a briga entre pessoas no mesmo lado para ver “quem é o mais liberal dos liberais” – o que no final acaba somente por desintegrar uma possível coalizão de defesas da ideia da liberdade. Saber jogar o jogo da República e da democracia é necessário, sempre dentro das normas estabelecidas, sem apelar para soluções autoritárias, para conseguirmos sair de um local que se assemelha a obras de Kafka e Orwell e rumarmos para uma Vale de Galt antes que tal movimento seja tarde demais.

*Anderson Bertarello, associado do Instituto de Estudos Empresariais 

Fontes:

https://www.gazetadopovo.com.br/republica/capangas-jagunco-e-abusos-oposicao-critica-falas-de-juizes-de-moraes/?comp=app-ios

https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/marcel-van-hattem/como-barrar-abusos-de-alexandre-de-moraes/?ref=busca

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/08/moraes-usou-tse-fora-do-rito-para-investigar-bolsonaristas-no-supremo-revelam-mensagens.shtml

https://www.intercept.com.br/2023/06/09/vaza-jato-continua-mais-viva-do-que-nunca/

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c07exldkzy8o

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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