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Antônio Mariano: O pequeno grande exemplo de democracia

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POR ANTÔNIO MARIANO*

Quando falamos sobre democracia, as referências mais utilizadas são os Estados Unidos e a Europa, lugares onde o sistema é visualizado como sendo bem consolidado e contando com ampla participação popular e instituições fortes. Dessa forma, acabamos esquecendo e ofuscando experiências importantes e igualmente interessantes. Segundo a revista inglesa The Economist, em seu índice de democracia editado a cada dois anos, na América Latina apenas Costa Rica e Uruguai possuiriam um sistema de “democracia plena”. E, a despeito do senso comum recorrente da democracia norte-americana como exemplar, o Uruguai tem aparecido à frente tanto dos Estados Unidos como de outros países também compreendidos como mais “desenvolvidos”, como Portugal e Espanha.

Para entender com maior profundidade uma das cenas mais fundamentais do contexto eleitoral uruguaio, integrei o programa de observação eleitoral da Fundação Konrad Adenauer, para acompanhar as eleições internas de seus partidos. Acostumado com o sistema eleitoral brasileiro – construído para atender a um país continental de mais de 140 milhões de eleitores –, observar um sistema feito para pouco mais de 2,5 milhões de eleitores e que ainda conta com o voto manual foi uma experiência singular e totalmente diferente do que estou acostumado a ver.

O sistema eleitoral uruguaio é, de longe, um dos mais complexos, confiáveis e institucionalizados que já conheci. Calcado em leis da primeira metade da década de 1920, é algo com o qual a sociedade já está acostumada, familiarizada com sua dinâmica. Assim, o fato de possuir um formato bastante conhecido pela sociedade civil auxilia na construção de confiança entre todos os setores envolvidos no processo eleitoral. Outro ponto fundamental é a ampla participação dos uruguaios nas militâncias partidárias: nas ruas de Montevidéu dizem que mais de 50% da população se identifica com algum dos três principais partidos (Partido Nacional, Partido Colorado e Frente Amplio, que na verdade é a união dos partidos de esquerda há mais de 50 anos). Algo impensável para outros países latinos, inclusive o Brasil.

Procurando uma explicação para a grande vinculação dos uruguaios com a organização política de seu país, em um contexto de crescente apatia, é possível observar na construção da identidade uruguaia a sua ligação bastante imbricada com as lutas para fundar um país que era constantemente invadido por seus vizinhos. É nesse contexto que surgem os chamados “partidos fundacionais”, que nasceram praticamente junto com a República. Como possível consequência da formatação política alicerçada em batalhas constantes por ampliação de direitos políticos, temos hoje a confiança popular e a participação massiva da sociedade civil na política uruguaia. É comum ouvir frases como “minha casa é colorada”, ou “na minha família nunca houve alguém que não fosse do Partido Nacional”, mostrando uma forte identificação secular, geracional e partidária. No Brasil, que possui um sistema de lista aberta, a personalidade dos candidatos acaba por gerar mais engajamento do que partidos. Também, para efeito de comparação, muitas vezes não há memória eleitoral sobre os candidatos votados nas últimas eleições. O baixo engajamento com o cotidiano da política se expressa também no desconhecimento sobre a organização interna do Congresso Nacional – não se sabe quais são as principais bancadas, comissões, entre outros –, o que pode ter como causa a desvinculação da representação política em relação à participação social.

Em seu discurso após ser escolhido como candidato único do Partido Nacional, Luis Lacalle Pou disse que devia muito aos militantes e que a política é o único caminho para construir uma sociedade melhor. Atualmente, no meu país, temos um presidente que não reconhece o valor da política, esnoba o Parlamento e raras são as vezes em que a classe política agradece a militância de seus partidos por fazerem campanha – quando há militância.

O exemplo uruguaio mostra que a educação política pode auxiliar no desenvolvimento de uma nação. Em tais circunstâncias, a sociedade vota com consciência, cobra resultados de seus representantes e participa da tomada de decisões, incluindo-se na responsabilidade deste trabalho. Há, então, um real accountability, que consiste em um ponderado sistema de freios e contrapesos, substanciado nos olhos que vigiam, evitando males maiores, como a corrupção.

Em seu discurso após ser escolhido como candidato único do Partido Nacional, Luis Lacalle Pou disse que devia muito aos militantes e que a política é o único caminho para construir uma sociedade melhor. Atualmente, no meu país, temos um presidente que não reconhece o valor da política, esnoba o Parlamento e raras são as vezes em que a classe política agradece a militância de seus partidos por fazerem campanha – quando há militância.

Um sistema eleitoral de quase um século, em que ainda se vota colocando uma lista dentro de um envelope, que por sua vez vai dentro da urna, contado manualmente por centenas de milhares de pessoas, é visto por muitos como arcaico e suscetível a fraudes; mas a verdade é que a larga tradição partidária e de respeito ao sistema político nunca permitiu que manipulações ocorressem (ou se ocorrem, que fossem vultosas) e dessem vida aos partidos, mesmo durante a ditadura militar, que não os extinguiu, a exemplo do que ocorreu no Brasil nos anos 1960, onde todos os partidos foram fechados e foi imposto um sistema bipartidário, artificial, que servia para a sustentação de uma imagem de democracia, sendo um deles representante do governo (ARENA) e o outro de uma oposição bastante fragilizada (MDB).

Viver a experiência uruguaia mostrou que a vitalidade da participação interna nos partidos é importante, não somente para as próprias instituições, mas principalmente para a construção da democracia política de um país. Mesmo com a participação não sendo obrigatória, mais de um milhão de uruguaios foram às urnas. Esse fato mostra que a política do país é bastante sólida e uma via para o desenvolvimento nacional. Discursos fáceis que pregavam a “antipolítica” foram rechaçados pelos eleitores, oferecendo um exemplo ao Brasil, Estados Unidos e Itália, que vêm adotando práticas nomeadas como populistas em seus respectivos cenários políticos.

Dessa forma, em um contexto de crescimento de discursos anti-institucionais, a mobilização popular e o envolvimento da sociedade civil na política parecem ser caminhos de resistência para a manutenção da estabilidade na ordem política. Ao rechaçar candidaturas extremadas e assegurar a realização da democracia como jogo de incertezas, sem interferências externas, a população uruguaia mostra que a política persiste como verdadeiro e legítimo local de disputa de projetos. Para nós, brasileiros e o resto do continente, um exemplo a ser seguido de como poucos conseguem fazer muito.

*Antônio Mariano é cientista político, mestre em administração pública e doutorando em história e política pela Fundação Getúlio Vargas. Presidente da Juventude Democratas RJ e assessor legislativo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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