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O Pastor amoroso

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Ao final de mais um ano de hegemonia de fenômenos midiáticos de massa, da nossa exaustão diante de um segmento cultural em busca de pautas e não da arte, e da idiotização e bestialização com as quais tentam preencher nossas telas e mentes, ofereço a você um tesouro em versos:

“O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.”

A estrofe acima é um fragmento do poema título da coluna de hoje, de autoria de Alberto Caeiro, um dos heterônimos do poeta luso Fernando Pessoa, tão conhecido por sua genialidade quanto pela singularidade de encantar em múltiplas “pessoas”. Desde os tenros anos, Pessoa criara, em torno de si, um universo de seres que eram, para o ortônimo, de convívio mais agradável que a realidade externa, e cujos temas e estilos eram alheios aos da voz original. Tamanha a alteridade entre os artistas, que cada um deles conta com biografia própria, chegando a mencionar uns aos outros em seus poemas, e até a trocar correspondências entre si.

Nascido em Lisboa, Caeiro teria se mudado, ainda criança, para um vilarejo interiorano, à procura de tratamento para sua saúde frágil. Alegoricamente tido como pastor durante sua curta vida, pois guarda rebanhos “que são seus pensamentos”, Caeiro ilustra o primado dos sentidos como fonte de conhecimento daquele que pretende gozar as dádivas da natureza, percorrendo os campos atrás de impressões, sobretudo visuais, e refutando qualquer atividade intelectual. Afinal, como dito pelo próprio, os “pensamentos são todos sensações” para o poeta bucólico, de linguajar simplório, instrução primária, que se exprime em “mau português”, e cujo ser se concentra na percepção sensorial. Porém, apesar da obstinação em negar o ato de pensar, tudo o que Caeiro faz é especular, ou seja, exercer sua intelecção, em curiosa contradição que revela a impossibilidade de uma poesia pessoana puramente baseada no sensacionismo, sem a pontada crítica e interrogativa herdada do ortônimo.

Em certo momento de sua existência, Caeiro, até então primitivo em seu contato direto com a realidade objetiva, sucumbe às armadilhas do coração, e, como de hábito, nem mesmo a experiência amorosa do pastor se resume às meras sensações. Prova disso são os paradoxos contidos nos versos que abrem este texto, fruto das reflexões de um Caeiro que contrapõe uma redução na visão ao prazer de “ver tudo”, a ausência à presença da amada como “uma coisa que está comigo”, e o gostar de alguém ao não saber “como a desejar”.

A descoberta do amor ainda modifica a relação do pastor com a natureza, que ele passa a enxergar através da pessoa amada. Nas palavras do aldeão enamorado:

“Tu não me tiraste a Natureza…
Tu mudaste a Natureza…
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma.”

Dentre todos os heterônimos, Caeiro, apesar da baixa escolaridade e da morte prematura, aos 26 anos, figura como o mestre inconteste para todos eles, inclusive para o ortônimo. É famosa a carta de Pessoa ao amigo Casais Monteiro, onde descreve a data da criação do pastor como um “dia triunfal”, pois “aparecera em mim o meu mestre”. Igualmente conhecidas são as manifestações de reverência, por parte dos heterônimos Ricardo Reis, diplomata, monarquista e admirador do paganismo, e Álvaro de Campos, o depressivo engenheiro naval, a Caeiro, “mestre querido”.

Assim, inspirada em versos do membro mais ilustre de toda a numerosa “família” pessoana, desejo a você uma embriaguez de poesia, para que possa vivenciar suas sensações como o fez Caeiro, com simplicidade e, ao mesmo tempo, com a atenção voltada para as ambiguidades ao nosso redor, ainda que se pense “com os olhos e com os ouvidos, e com as mãos e os pés, e com o nariz e a boca”. E até muito breve, em 2023!

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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