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Marighella, a farsa

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Chegou a minha vez de conferir o longa de Wagner Moura, movida pelo dever de comentar, fora da bolha coletivista, a produção sobre figura pertencente a um passado de torturas e demais práticas repulsivas. Sem surpresa, constatei que, em vez de nos brindar com entrevistas ou exibição de documentos, a produção não passa de ficção, ao fabricar uma persona inverídica.

Após ser mostrado como pai amoroso, o protagonista é logo visto em ação, praticando assaltos a bancos, que seriam destinados ao financiamento da revolução para a derrubada da ditadura e restauração da democracia. Porém, o filme omite, com cuidado cirúrgico, que Marighella pretendia a instauração da ditadura do proletariado, indispensável, na visão marxista, à transição entre a dita opressão burguesa capitalista e o sonhado comunismo. Assim, eis uma mentira despudorada sobre o projeto dos guerrilheiros da época, que consistia apenas em substituir uma ditadura por outra.

Na mesma toada de artificialismo, Marighella, o homem sem tempo para ter medo – quase um Siegfried tropical! -, concede entrevista a um correligionário estrangeiro, e ouve, com indisfarçável soberba, que seu livro era admirado até por Sartre. Contudo, não interessou aos produtores contextualizar que, naquele ano de 68, o escritor Francês já endossava explicitamente a violência dos campos de extermínio soviéticos (gulags), postura esta que, se tivesse vindo à tona no filme, teria comprometido a falsa aura humanista atribuída ao filósofo e ao próprio protagonista.

Aliás, a referida cena sequer menciona a obra tão elogiada, que não é outra senão o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, brochura onde Marighella define como objetivos da sua guerrilha “a exterminação física dos chefes e assistentes das forças armadas e da polícia, e expropriação dos recursos que pertencem aos grandes capitalistas.” Sem meias palavras, planos de homicídios e roubos, que foram varridos pelos produtores para baixo do tapete, na obstinação de tornar um sanguinário o arauto de uma “luta justa”. Trata-se de uma farsa, cujos realizadores abusaram de ardis para a criação de um Marighella sob medida para a justificativa de uma “causa”.

Ocorre que a farsa, como gênero teatral, já foi empregada com a nobre finalidade de desnudar vilanias. Mestre na arte de fazer rir sobre as misérias de seu tempo, Molière, por meio de jogos de cena farsescos como, por exemplo, esconderijos sob mesas, permitia ao escondido ouvir certas verdades que outros personagens não diriam na sua frente. Tais artifícios eram um modo de retirar de alguns tipos o falso véu de pureza e bondade, e de revelar sua verdadeira face, tanto aos olhos de sua vítima quanto diante de nós, espectadores.

Em Tartufo ou o Impostor, o personagem-título usa sua suposta devoção para angariar a confiança de um rico burguês, casar-se com sua filha, apossar-se de sua herança, e ainda conquistar sua esposa. O cômico reside na dissintonia grosseira entre o discurso e a ação de Tartufo, visível a todos com exceção do próprio burguês, cuja idiotia hilária na adoração ao hipócrita se alinhava à moral prevalecente na França católica do Rei-Sol, onde seriam admissíveis quaisquer atitudes tomadas sob o inquestionável manto da fé.

A partir do século XX, sociedades começaram a idolatrar um novo credo, o da justiça social, sob cujo amparo passaram a ser “justificáveis” quaisquer malfeitos, incluindo a promoção de ditaduras, a violência e até o saque ao erário público, desde que em prol do tal combate à desigualdade, seja lá o que isso signifique. Nesse contexto, se evidencia o fundamentalismo do longa nacional, ao enaltecer alguém que, apesar de criminoso, é escusado por ser defensor de uma causa justa.

Se Molière, ainda festejado em seus 400 anos, usa a farsa para satirizar os hipócritas de sua época, Moura, por sua vez, exorbita da hipocrisia para criar sua farsa histórica. Espero que nossa sociedade aprenda, algum dia, a distinguir obras artísticas de panfletos desonestos.

Foto: Rogério Resende/Agência Brasil.

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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