*Por Pedro Zagury
Seria impossível dizer os fatos atuais com o grau necessário de exatidão, mas enquanto este artigo está sendo escrito, a Rússia de Vladimir Putin está atacando alvos civis e militares ucranianos, estando a situação do país incerta, bem como o destino do governo e até sua própria existência como estado independente. A informação sai da Ucrânia de modo confuso, e mesmo as fontes de primeira mão no país não sabem ao certo a situação do conflito como um todo. Dito isso, se faz necessário, para os leitores brasileiros, esclarecer o que se sabe da situação, bem como o contexto onde ela se insere na geopolítica internacional explicando as causas e possíveis consequências da invasão para a Ucrânia e a comunidade mundial.
“Histeria” e Violência
O conflito imediato têm suas raízes nos últimos meses, nos quais o Presidente Volodymyr Zelensky da Ucrânia buscou relações mais próximas à Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, organização de defesa mútua liderada pelos Estados Unidos e à União Europeia (UE), frente à ameaças russas que já haviam se concretizado na ocupação anterior da região da Crimeia, no sul do país, e o reconhecimento por parte de Putin das regiões separatistas do Donbass, no leste do país, cuja separação militar da Ucrânia foi fomentada e ajudada pela Rússia. Nas semanas anteriores ao ataque, veículos de mídia divulgaram informações confusas, na medida em que a diplomacia do governo de Putin e suas forças militares mandaram sinais contraditórios sobre suas intenções, posicionando tropas na fronteira da Ucrânia e confundindo espectadores internacionais sobre uma possível invasão. No dia 16 de fevereiro, a porta-voz do Ministério de Relações Internacionais da Rússia, Maria Zakharova, até compartilhou uma piada em seu Facebook, perguntando quando seria a suposta invasão, que seria uma criação “histérica” dos inimigos da Rússia.
Porém, na madrugada do dia 24, em meio ao que fontes russas relataram ser o fim de exercícios militares e a retirada das tropas de posições na fronteira com a Ucrânia, o país foi invadido do norte (por tropas saídas de Belarus, nação aliada à Rússia), sul (à partir da Crimeia, parte da Ucrânia que havia sido ocupada anteriormente) e leste, da Rússia em si e dos estados separatistas de Lugansk e Donetsk (territórios formalmente ucranianos, recentemente anexados à Federação Russa). O bombardeio de alvos militares e civis, incluindo áreas residenciais em Kiev, Chernihiv e Starobilsk, foi seguida de forças de ocupação, colunas de tanques e grupos de paraquedistas em grandes centros, que penetraram as defesas fronteiriças porém encontraram resistência mais forte do que antecipavam, não cumprindo, segundo especialistas americanos e o Ministro da Defesa inglês Ben Wallace, os objetivos iniciais esperados da invasão.
O fluxo da informação saída do país é incerto, sendo que os governos da Ucrânia e da Rússia exageram estatísticas e os jornalistas no país não têm liberdade para investigar os ocorridos. Até as estatísticas de mortos e feridos são impossíveis de calcular, sendo que ambos lados exageram o número de inimigos mortos e negligenciam o número de baixas próprias. O governo de Putin até ocasionou mais um choque da comunidade internacional ao descobrir-se que seu exército estava empregando caminhões equipados com crematórios móveis para eliminar qualquer rastro de baixas do lado russo.
A Situação Internacional
No geral, a maioria das informações que saem do país são tendenciosas ou incompletas, e a situação é dinâmica demais para dizer ao certo o que está acontecendo, porém a situação internacional já se forma de modo definitivo, estando os países da OTAN comprometidos a ajudar a Ucrânia com suprimentos de guerra, como armamentos anti-tanque dos EUA, Reino Unido, Polônia e Lituânia, e talvez até a intervenção militar direta, tendo sido colocada em prontidão a Força de Reação Rápida da aliança nas fronteiras da Ucrânia; dos 30 participantes da aliança, 27 se comprometeram com armamentos, munições ou ajuda humanitária. Até o governo do Japão, ofereceu ajuda com empréstimos e sua população mandou doações e voluntários ao país, como muitas outras. Apesar disso a OTAN não assumiu nenhum compromisso além de defender os estados-membros nas fronteiras do conflito, não podendo agir por a Ucrânia não ser
membro.
A China, por sua vez, mantém a comunicação aberta a ambos lados, defendendo o direito do país reagir à o que é visto como o “avanço” da OTAN sobre a suas fronteiras, ao mesmo tempo que professa uma defesa da integridade territorial de todos os países, segundo o Ministro de Relações Internacionais Wang Yi, e pede por uma solução diplomática. Analistas internacionais, notam que a China de Xi Jinping estará observando a situação com cuidado, sendo esta muito semelhante à do Taiwan, república na costa da China que o Partido Comunista Chinês pretende reintegrar ao país através de “todos os meios necessários” à autocracia central de Beijing. Em um discurso alguns dias antes da invasão, o Primeiro Ministro inglês Boris Johnson chegou a declarar que “Se a Ucrânia for ameaçada, o choque ecoará no mundo todo. E estes ecos serão ouvidos no leste da Ásia, serão ouvidos no Taiwan”. Por essa razão, bem como a reorientação da economia russa em direção à China após as sanções recentes, o Kremlin esperava um apoio mais forte de Xi Jinping, como ocorreu no início do conflito, porém o governo chinês têm se distanciado cada vez mais do conflito na medida que a Rússia não garante a vitória rápida que antecipava.
O que Putin quer?
Os objetivos da Rússia também não são idênticos aos da China com o Taiwan, sendo que o governo de Vladimir Putin declarou que as forças enviadas à Ucrânia são uma extensão das forças de “manutenção de paz” (peacekeeping) enviadas inicialmente às repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, no Donbass.O governo de Putin declarou objetivos diversos, apoiando-se na narrativa da “desnazificação” da Ucrânia, baseada no argumento que a Ucrânia seria um bastião do nazismo na Europa devido à elementos radicais minoritários como o Batalhão de Azov e a participação de ucranianos no exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial, (incentivados pela perseguição e fome-genocídio, o Holodomor, causada no país pelo o governo soviético).
Partindo das regiões efetivamente anexadas pela Rússia, Putin busca desmilitarizar a Ucrânia e eliminar o país como entidade política soberana, com o pretexto de que este seria uma ameaça à segurança da Rússia, principalmente se o governo de Zelensky escolhesse fazer parte da OTAN. Este desarmamento pode se dar de diversas formas, desde a implantação de uma zona fronteiriça sem presença internacional e ou poderio militar, até a anexação completa do país, como ocorreu com as regiões do Donbass e Crimeia, excetuando talvez as regiões mais ao oeste, por receio de uma retaliação intensiva por parte da OTAN.
O Novo Imperialismo Russo
A invasão se insere em um contexto recente de expansão russa, que viu a ex-superpotência crescer na região e pressionar seus vizinhos de modo a recriar a esfera de influência ou domínio, o que está sendo visto por muitos observadores no Leste Europeu como uma ressurgência do imperialismo soviético. Em 2008, seguindo uma guinada independentista na Geórgia, Putin invadiu o país usando as mesmas estratégias do conflito atual, incluindo a dissimulação diplomática e o uso de exercícios militares como pretexto, e, após uma vitória rápida sobre a pequena nação, efetivamente eliminou a capacidade do governo de resistir à Rússia. Mais recentemente, o governo russo mandou uma missão militar ao Cazaquistão para assegurar a estabilidade da autocracia local, ameaçada por protestos, e interveio no conflito de Nagorno-Karabakh, invadindo a região fronteiriça para assegurar o fim das hostilidades e se assegurar como líder na região,
Na Ucrânia em si, as primeiras hostilidades começaram em 2014, quando o governo de Putin disseminou a narrativa de que a população falante de russo no leste do país estaria sendo perseguida pelo governo de Kiev, necessitando a intervenção da Rússia para sua proteção do “genocídio” que estaria em curso. Após fomentar revoltas de elementos pró-Rússia na Ucrânia, Donetsk e Lugansk, inclusive ocupando estas regiões com soldados sem demarcação militar (o que caracteriza outra violação dos Protocolos de Genebra), a Rússia anexou as três regiões, violando promessas reiteradas mais recentemente de que não invadiria violaria a soberania ucraniana.
Estes atos de expansão se baseiam no pensamento estratégico russo, que tem como princípio-guia que a Rússia precisa de uma zona de proteção de países em volta de sua fronteira oeste para evitar que o país em si seja invadido, como ocorreu na Segunda Guerra Mundial. Deste pensamento derivam os receios do estados do Báltico, da Polônia e até da Finlândia que Putin repetiria as invasões feitas pela União Soviética no começo do século XX, quando dominou a Estônia, Latvia, Lituânia, Ucrânia (após um período de breve independência seguindo a queda do Império Russo), e Polônia, bem como a Finlândia, que foi forçada a conceder partes de seu território seguindo sua derrota na Guerra do Inverno (1939-1940).
Por essa razão, Putin vê a OTAN como uma ameaça em suas fronteiras, considerando seus componentes estados-satélites dos EUA da mesma maneira que a Belarus é da Rússia, pois a mentalidade do Kremlin vê os estados mais fortes necessariamente dominando seus parceiros mais fracos militarmente, como ocorreu na história russa, desde as grandes expansões do Império Russo.
Esta concepção é baseada, porém em um raciocínio cíclico, pois os estados fronteiriços à Rússia se aliaram aos EUA justamente devido à ameaça russa, e quanto mais a Rússia os ameaça, mais se torna realidade que o estado expansivo (e muitas vezes agressor) é na verdade o de Putin, não vice-versa. O erro de concepção (talvez proposital) do Kremlin é ressaltado pelo fato que a Rússia já compartilha fronteiras com a OTAN, sendo os estados do Báltico e a Polônia membros da organização justamente devido à agressão russa, e não para agredir o país, o que é evidenciado pela relativa paz na fronteira Russo-Polonesa, por exemplo.
Opiniões Divididas
No cenário internacional, a situação ucraniana gerou reações polêmicas em todo o espectro político, provocando simpatias, paradoxalmente, entre conservadores sociais e elementos de esquerda. Para muitos conservadores brasileiros, Putin parece uma esperança para o Oeste devido ao combate do que o Kremlin chama de “degradação moral” dos valores ocidentais, como é evidente em artigos como “A Rússia de Putin, nova terra da liberdade” de Bruna Frascolla. Porém, o caráter despótico do presidente russo, exemplificado por sua repressão da oposição, especialmente na figura de Alexei Navalny, envenenado e preso por Putin, simplesmente usa a defesa dos costumes tradicionais como uma cobertura para a cleptocracia instalada pelo presidente que fez dele e seus aliados donos do estado russo, fatos estes que dificilmente caracterizam um conservador, muito menos um liberal. A repressão de protestos anti-guerra na Rússia e prisão de políticos por “retórica anti-guerra” é mais uma prova de que o estado russo se tornou o feudo de Putin, e sua liderança corresponde cada vez menos à vontade democrática do povo russo.
Outra fonte de apoio à Putin são os conservadores que questionam a OTAN por ter feito intervenções em países como a Líbia, ao mesmo tempo que critica Putin por sua agressão, porém, deixando de lado a validez de quaisquer intervenções militares, este argumento é nulo pois um erro não valida o outro, muito menos da perspectiva ucraniana, para a qual pouco importa o histórico da OTAN. Neste grupo se inserem algumas pessoas de visões políticas diferentes, que questionam o porquê se fala deste guerra, e não de outra (geralmente de forma acusatória, apontando para alguma outra agressão), o que caracteriza na verdade uma tentativa de ganhar pontos políticos em cima de conflitos sangrentos, ignorando o sofrimento das vítimas em troca de uma suposta vitória retórica.
A esquerda tradicional, representada no Brasil, entre outros, pelo Partido dos Trabalhadores, em atos de estranha concordância com alguns conservadores, se posicionou de forma pró-Rússia devido à visão binária de Guerra Fria, onde supostamente os Estados Unidos estariam atacando a Rússia com a OTAN. Esta crítica, além de se basear em uma visão errônea de mundo, cai no mesmo problema que as anteriores, usando ou ignorando o sofrimento de inocentes em prol de um argumento político sem sentido.
O Botão Nuclear
Alguns dias atrás, Putin alertou uma comunidade mundial em alerta após a invasão que “quem interferir levará a consequências nunca antes experimentadas na história”, alardeando, não pela última vez, a possibilidade de seu governo usar armas nucleares caso outros países, e especialmente organizações como a OTAN, reagissem ao que o Kremlin considera sua campanha de pacificação de suas fronteiras. Com as demoras, perdas e, segundo analistas militares ouvidos pela VICE, surpreendente incompetência do exército russo frente à resistência ucraniana, o governo de Putin parece cada vez mais disposto a, ao menos discutir, a opção nuclear.
Porém, há razão para acreditar que Putin, que foi membro da notória KGB, aparato de terror do estado soviético, é um manipulador assíduo, e está usando o teatro nuclear como uma forma de segurança, cobrindo as faltas de competência e capacidade de suas forças armadas com uma barragem de ameaças com o objetivo de convencer o mundo que ele é um lunático disposto a explodir o mundo, e não um líder frio e calculista. Porém, o som e fúria nucleares de Putin não é só uma cortina de fumaça, sendo que a Rússia se mostrou disposta várias vezes desde o começo a praticar crimes de guerra, como o bombardeio de áreas civis e até igrejas, e o terror empregado por suas forças armadas pode se intensificar na medida que a vitória parece cada vez menos provável. Portanto, mesmo que a ameaça nuclear não seja uma certeza, os ataques à áreas cheias de não-combatentes, inclusive com bombas de fragmentação, as bombas cluster (como este, à um hospital), mostram que a Rússia de Putin não se vê restringida por nenhuma preocupação humanitária.
Consequências
Enquanto este artigo está sendo escrito, medidas como sanções (especialmente à indústria de energia russa), a expulsão da Rússia do sistema de comunicação bancária SWIFT, a condenação internacional e até intervenção estão sendo discutidas, porém é difícil dizer o que acontecerá nos próximos dias. Porém, uma coisa é certa: a Rússia de Putin, que está começando a mostrar desejos de acabar com uma guerra que surpreendeu o mundo, percebe cada vez mais que seus planos de uma guerra rápida e decisiva encontraram uma população determinada e tenaz de milhões, sendo estes soldados ou não, e na medida que estes resistem, cada dia melhor armados por seus aliados e determinados por sua liderança, o mundo estará olhando o destino da Ucrânia.
*Pedro Zagury é estudante de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero (SP), interessado em conflito e um ávido dos conflitos recentes no Leste Europeu.
Foto: Ministério de Defesa da Ucrânia