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Galileu foi censurado pelo STF

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Na última semana, eu estava com minha turma do curso de Introdução a Engenharia numa palestra sobre a filosofia da ciência quando me recordei de uma certa vez em que uma amiga cubana radicada nos Estados Unidos me fez uma das perguntas mais intrigantes que de bom grado recebi: qual é a forma da vida? Uma das metáforas mais comuns para responder a esse questionamento é: A VIDA É UM CÍRCULO. Nela enfatizamos que os eventos acontecem em ciclos, fatalmente repetindo-se, e que a cada ciclo precisamos aprender algo novo para nos preparar para o próximo.

Essa metáfora é tão presente que foi expressa em poemas, como Suite of Mirrors, de Harold Witt, publicado pela revista Contact em 1962, da qual traduzo livremente o trecho a seguir

Você pode pensar que a história ensina; repete;

página após página, um poema em perfeita rima

badaladas ecoando sinos de ambos os lados dos lençóis

para nascimentos e funerais,

informam as horas da eterna Alice,

de Hamlet as falácias —

a última luz de desaparecidas galáxias.

Ela também pode ser percebida em graves escritos que procuram discutir as relações sociais, como no caso do comentário de Karl Marx no seu 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Isso aconteceu quando o palestrante mencionou a história de Galileu Galilei. Ele foi condenado pela Inquisição por “suspeita veemente de heresia” e obrigado e recitar e assinar uma renúncia formal de suas ideias.

Fui julgado veementemente suspeito de heresia, isto é, de ter sustentado e acreditado que o sol está no centro do universo e imóvel, e que a Terra não está no centro do mesmo, e que se move. Desejando, porém, afastar das mentes de Vossas Eminências e de todos os fiéis cristãos esta veemente suspeita razoavelmente concebida contra mim, renuncio com coração sincero e fé não fingida, amaldiçoo e detesto os ditos erros e heresias, e no geral todo e qualquer erro, heresia e seita contrária à Santa Igreja Católica. (Tradução livre do autor)

Me chama a atenção como este episódio é semelhante à decisão imposta ao Telegram pelo Min. Alexandre de Moraes que, entre outras sanções, obrigou o aplicativo a publicamente declarar a seguinte mensagem

Por determinação do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a empresa Telegram comunica: A mensagem anterior do Telegram caracterizou FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO atentatória ao Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, ao Estado de Direito e à Democracia Brasileira, pois, fraudulentamente, distorceu a discussão e os debates sobre a regulação dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada (PL 2630), na tentativa de induzir e instigar os usuários à coagir os parlamentares.

Mas as semelhanças não param aqui.

Quando Galileu nasceu em 1564, não existia ainda a ciência. Mas quando de sua morte em 1642, ele tinha pavimentado o caminho para a revolução científica do século XVII em que a ciência se tornaria uma disciplina em um sistema filosófico completo e com todo o prestígio de seus métodos. Galileu foi pioneiro em compreender a matemática como a linguagem no qual é escrito o livro da natureza (The Essayer, 1623), o que provocou uma revolução metodológica nos intelectuais que se dedicavam ao estudos da filosofia natural e que viria a produzir um gênio do calibre de Isaac Newton em menos de um século. Apesar disso, era um verdadeiro experimentalista que jogava pedras de torres e mastros de navios, brincava com imãs, relógios e pêndulos na tentativa de elaborar princípios gerais sobre a natureza. Galileu era o arquétipo do cientista como fantasiamos hoje na percepção popular.

À época, o entendimento majoritário sobre a natureza da matéria era o das categorias físicas aristotélicas que entendia que as substâncias são formadas por um elemento celeste — o éter, ou quintessência — e pelos quatro elementos terrestres — fogo, ar, água e terra — cada um destes com um conjunto de propriedades que se combinavam para explicar os fenômenos do mundo observável, incluindo o movimento dos corpos. O grande projeto científico de Galileu foi o de tentar unificar a compreensão sobre a natureza de toda a matéria, seja ela terrestre ou celeste, utilizando um único elemento — a matéria corpórea — cujas propriedades e movimentos ele pretendia descrever por meio da matemática e utilizando as máquinas simples de Arquimedes como modelo (a balança, o plano inclinado e a alavanca, para as quais Galileu adicionou o pêndulo).

Sua investigação começa pelo estudo da natureza da matéria e da mecânica do movimento dos corpos, entre 1590 e 1608. Nessa época formulou leis matemáticas para explicar o movimento em queda livre, o movimento balístico, um princípio de inércia e um princípio de relatividade do movimento. Em 1609 Galileu começa a trabalhar com o recém inventado telescópio, o que lhe renderia inúmeras contribuições pelas quais se tornou conhecido: a descrição das montanhas da lua, a observação das luas de Júpiter, das fases de Vênus e dos anéis de Saturno.

Foi durante esse período que começaram as controvérsias com a Igreja que o transformariam no personagem principal de uma suposta guerra entre ciência e religião e mártir do racionalismo contra o dogmatismo. Primeiro, ao comparar as montanhas da lua às montanhas da Boêmia (na atual Chéquia) Galileu começa a questionar a distinção entre o mundo terrestre e o mundo celeste que faz parte tanto da cosmologia aristotélica quanto dos dogmas da Igreja em sua época. Mas foi somente em 1613 que ele expressou abertamente suporte à teoria heliocêntrica de Copérnico com a publicação de Cartas sobre as Manchas Solares (Letters on Sunspots, 1613) em que apresenta inúmeras evidências telescópicas que suportam a nova visão do universo. A principal é a observação de que Vênus apresenta uma sequência de fases assim como a Lua. Isso implicaria que Vênus orbita o Sol e sugere que a Terra deve ser como outro corpo celeste qualquer que se move em torno do Sol e não o contrário. Galileu argumenta que o modelo geocêntrico de Ptolomeu não é capaz de explicar este fenômeno.

Algo que chama a atenção é que, ao contrário de seus antecessores — Ptolomeu, Copérnico, e até mesmo Tycho Brahe — que tratavam seus sistemas planetários, fossem eles centrados na Terra ou no Sol, como meras ferramentas para calcular o movimento observado dos astros no céu, Galileu entendia a teoria de Copérnico como um compromisso com uma cosmologia fisicamente realizável, um retrato da estrutura necessária do mundo material. Trata-se, de certa forma, de um questionamento à natureza do cosmos que foi visto por autoridades eclesiásticas como uma tentativa de reinterpretar a bíblia e, portanto, uma violação aos decretos do Consílio de Trento.

Assim como no presente caso sobre notícias falsas, existe até hoje muita controvérsia em torno das acusações contra Galileu. Entre 1613 e 1614, tornou-se público o escrutínio por parte das autoridades eclesiáticas dos escritos de Copérnico. Em 1616, o livro Sobre o Movimento das Orbes Celestes (On the Revolutions of the Heavenly Orbs, Nicolau Copérnico) foi temporariamente censurado pela Congregação do Índice de Livros Proibidos, aguardando sua correção. Dessa forma, em 1613 quando Galileu publicou seu primeiro livro considerado controverso, não havia ainda crime de heresia estabelecido pelas autoridades da igreja. Isso não evitou que o cientista fosse secretamente investigado pela Inquisição, o que culminou na sua convocação pelo Cardeal Robert Bellarmine, a pedido do papa Paulo V, que o advertiu a não ensinar ou defender a teoria de Copérnico (Shea, William R., and Mariano Artigas, 2003, _Galileo in Rome: The Rise and Fall of a Troublesome Genius_, Oxford: Oxford University Press). As correções ao livro de Copérnico foram apresentadas em 1620, mas este permaneceu no Índice até 1835. O resultado da condenação de Galileu parece ter sido de fato o primeiro pronunciamento público de que a doutrina de Copérnico seria uma heresia.

Mais surpreendente, o livro que gerou a segunda condenação, dessa vez formal, de Galileu duas décadas mais tarde em 1633, Diálogos Sobre os Dois Principais Sistemas de Mundos (Dialogue Concerning the Two Chief World Systems, 1632), havia sido autorizado pela Inquisição e pelo papa Urbano VIII, amigo pessoal de Galileu e que o havia defendido das acusações de heresia anteriormente. O papa solicitou explicitamente que o livro trouxesse ambos os argumentos favoráveis e os contrários à teoria heliocêntrica, de forma a não advogar pelo sistema de Copérnico. Assim o fez Galileu. Seu verdadeiro pecado, intencional ou não, foi de natureza política e estética. Ele retratou a defesa do sistema geocêntrico preferido pela igreja por meio do personagem Simplício (que pode significar “simplório” em italiano — Finocchiaro, M. A. (1997). _Galileo on the world systems: a new abridged translation and guide_. Berkeley: University of California Press) que frequentemente incorria em erros e foi interpretado pelo inquisidor como uma tentativa de fazer o papa parecer um tolo.

Não está claro se Galileu foi formalmente processado antes ou após sua primeira punição, mas foi considerado reincidente do crime de heresia. Sua condenação final em 1633 tinha três partes essenciais:

1. Galileu deveria rejeitar suas opiniões previamente publicadas, recitando a mensagem determinada pela Igreja;

2. Galileu seria aprisionado de acordo com a vontade da Inquisição. Ele permaneceu em prisão domiciliar até sua morte em 1642;

3. Seu último livro, Diálogos, foi banido. Em um ato não anunciado na condenação, foi também proibido de publicar qualquer um dos seus trabalhos, incluindo aqueles que viesse a escrever no futuro.

A legitimidade da condenação de Galileu considerada em termos teológicos e racionais é ainda mais problemática. Em 1615, Galileu analisou especificamente o problema da doutrina da Igreja contra o sistema heliocêntrico na Carta a Castelli (Letter to Castelli, 1615) e na Carta à Grã-Duquesa Christina (Letter to the Grand Duchess Christina, 1615) em que ele argumenta que existem duas verdades: uma derivada das escrituras e outra criada pelo mundo natural (Finocchiaro, M. A. (1989). _The Galileo Affair: A Documentary History_. Berkeley: University of California Press). Como ambas são expressões da vontade divina, elas não podem contradizer uma a outra. Mas ambas as escrituras e a criação requerem interpretação para que possamos apreciar sua verdade — a escritura, como documento histórico, porque precisa direcionar o homem comum à verdadeira religião; a criação porque o ato divino precisa ser separado do senso comum pela investigação científica. Longe de contestar o poder e a legitimidade da Igreja, me parece que Galileu procurava conciliar sua crença religiosa ao seu empreendimento científico.

Galileu foi vítima não só do arbítrio e da perseguição, mas também da insegurança jurídica causada por atos judiciais secretos e direcionados a condená-lo. Certamente essa mesma postura atual de membros do Judiciário brasileiro causará muita dor a pessoas específicas, mas é Galileu quem é lembrado nos anais da história enquanto seus inquisidores foram relegados ao papel de opressores, apesar de todo o seu esforço para fazer parecer o contrário. Não concordo com a afirmação de Marx, a de que estaríamos revivendo essa história como uma farsa. Na verdade, estamos revivendo uma tragédia causada pela ingenuidade de tiranos que, mais uma vez, acreditam que podem controlar ideias. A história mostrará mais uma vez que não podem.

A história mostrará mais uma vez que não podem. Até lá Galileu segue censurado pelo STF.

 

*José Edil Guimarães de Medeiros é doutor em microeletrônica e professor na Universidade de Brasília. Foi empresário do setor de semicondutores. Descobriu as ideias de liberdade ao ingressar no funcionalismo público em 2011, na tentativa de compreender o sistema de incentivos que fundamenta os resultados da máquina pública. Com amigos, fundou o Instituto Liberal do Centro-Oeste e o Instituto de Formação de Líderes de Brasília, do qual é ex-presidente e Conselheiro

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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