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O que uma pegadinha russa e o livro 1984 nos ensinam sobre autoritarismo?

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*Fernando Tinoco

Em uma pegadinha russa com dois atores e os transeuntes num shopping, pudemos ter um lembrete sobre como a humanidade se comporta frente aos primeiros sinais de autoritarismo. A pegadinha se passa em um shopping, onde um “segurança” deve se certificar de que as pessoas estão usando corretamente as máscaras para evitar a transmissão da COVID-19.Já o outro ator personifica um cidadão comum, vestindo casaco, calças e boné. Porém, para dar vida à pegadinha, esse “cidadão” não está utilizando sua máscara.

A dinâmica se dá da seguinte maneira: o “cidadão” anda na frente de pessoas que não estão cientes da pegadinha, cruzando o caminho do “guarda”. O “guarda” então o aborda e pede onde está a sua máscara. Quando o “cidadão” dá de ombros, indicando que não sabe, nem se importa com a máscara, o “guarda” saca um cassetete e começa a golpeá-lo.

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A graça está justamente na reação das pessoas que não se deram conta da pegadinha. Como você, leitor, se comportaria nesse caso? Tentaria defender o cidadão que está apanhando do guarda, Correria para não apanhar ou aplaudiria o ato? Sua resposta seria a mesma se você também não estivesse utilizando máscara?

A pegadinha só acontece com pessoas que estão sem máscara, então, não conseguimos saber a reação de pessoas que estariam seguindo as regras. Confesso que não sei bem qual seria a minha reação no calor do momento, porém, ao assistir ao vídeo, a minha vontade era de ajudar o ator cidadão em apuros.

Durante a pegadinha, a reação das pessoas é ser submissa à autoridade e rapidamente colocar a máscara, antes que chegue a vez delas de cruzar o caminho do guarda. Claro que essa não é uma pesquisa com metodologia científica; nas pegadinhas, não sabemos nem se as pessoas que deveriam estar desavisadas estão mesmo ou se são atores cientes da dinâmica encenando uma reação natural.

Em um experimento científico realizado pelo psicólogo Stanley Milgram, retratado no filme O Experimento de Milgram de 2015, ele verifica que o ser humano tende a seguir ordens de uma autoridade, mesmo que elas sejam claramente antiéticas e até criminosas.

Publicado em 1949, o romance 1984 de George Orwell narra uma história que se passa em um ambiente futurístico em que o Estado já assumiu o poder absoluto sobre o indivíduo, ou seja, já não são mais sinais preliminares de autoritarismo que vemos, mas sim a sua forma mais pura e abrangente. A história tem três personagens centrais, além de dois personagens secundários, quase que abstratos. Os personagens são o protagonista Winston Smith, que representa a classe trabalhadora e que, apesar de seguir diligentemente todas as regras do Estado, discorda delas. A heroína da história é Julia, uma mulher bem-humorada, com ideias próprias e preocupações existenciais, algo proibido pelo partido. O’Brien é um agente do alto escalão do governo, personificando o autoritarismo do Estado. E os personagens abstratos são o autor Emmanuel Goldstein, que representa a luta em favor da liberdade e resistência contra a tirania. Suas ideias são arduamente perseguidas pelo partido. E, por fim, o Big Brother, que é o ditador de Oceania (lugar sob domínio do partido), porém ele não tem personificação: é quase um ser onipresente e imortal, e o partido utiliza sua figura sobre-humana para manter o poder sobre seus governados.

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O pano de fundo deste romance é um mundo de guerra prolongada, vigilância governamental onipresente e manipulação pública e histórica. Os residentes deste super país são controlados por um sistema político totalitário, o “socialismo inglês”, conhecido como “Ingsoc”. O Estado é controlado pelas elites privilegiadas de partidos políticos internos que condenam o individualismo e a liberdade de expressão como “crimes do pensamento”, tendo suas políticas aplicadas pela polícia do pensamento.

Neste contexto, Winston trabalha no Ministério da Verdade onde é um revisor histórico. Sua função é encontrar documentos históricos como artigos de jornais que possam não favorecer o partido e reescrevê-los com tom favorável ao regime. Assim como toda a população, ele vive na miséria. Bens de primeira necessidade, como uma lâmina de barbear, são escassos.

O início do romance entre Winston e Julia se dá pela troca de olhares no dia a dia. Depois, começam a conversar, e Julia leva Winston a um lugar belo, arborizado, pouco conhecido e proibido aos cidadãos de baixo nível. Lugar bem diferente do ambiente que eles frequentam, onde há grande poluição do ar e vigilância de todos os seus movimentos. O autor é genial ao fazer com que o leitor se sinta sufocado ao descrever o dia a dia de Winston e Julia. Já no ambiente proibido, o leitor sente um certo alívio acompanhado de um sentimento expansivo, propício para o avanço da trama.

Já O’Brien aparece na história ao se apresentar a Winston como uma pessoa do alto escalão do governo, dando-lhe um livro proibido que só um membro da resistência contra o governo poderia ter.

Na verdade, O’Brien é um agente da Polícia do Pensamento, leal ao partido. Faz parte de um movimento de resistência à falsa bandeira, cuja missão é encontrar criminosos do pensamento, cidadãos que pensam algo considerado inaceitável pelo Partido, atraí-los, fingindo estar do lado deles para, então, prendê-los e “curá-los”.

A missão é concluída quando Winston se descuida e cai nas armadilhas de O’Brien. Winston e Julia são capturados e levados a câmaras de tortura. Lá passam por longo e brutal tratamento, até que, ao se reencontrarem, estão totalmente transformados e catequizados segundo a doutrina do Partido.

A meu ver, George Orwell descreve um cenário pós-apocalíptico: ao invés de o mundo ter sido destruído por uma doença ou catástrofe natural, o apocalipse advém de um governo totalitário 100% bem-sucedido em seus planos de dominação total.

Para você, leitor, o que impede que o ambiente descrito no livro 1984 se torne real no Brasil? Acredita que há um ponto a partir do qual os indivíduos reagiriam e se oporiam a comportamentos autoritários do governo?

Assim como John Philpot Curran disse: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Devemos nos manter vigilantes para que as ânsias autoritárias sejam sempre contidas e não tenhamos que passar do ponto em que só há volta após muito sofrimento e vidas perdidas, como já ocorreu no passado e ocorre atualmente em diversos regimes ao redor do mundo.

*Fernando Tinoco é bacharel em administração de empresas, especialista em Investment Banking e associado ao IFL-SP. Atua há 10 anos no mercado financeiro.

Foto: reprodução/arquivo pessoal.

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Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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