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Não cabe ao STF decidir sobre aborto ou outros desacordos morais razoáveis

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Por Mariano*

Na sexta-feira passada (22/9/2023), a Ministra Rosa Weber, na ADPF 442, da qual era relatora, proferiu voto, no Plenário Virtual, para apontar a exclusão de criminalização da interrupção voluntária e induzida da gestação (aborto) até as doze primeiras semanas.
Esta breve reflexão não se debruçará sobre o mérito do tema em si. Na realidade, debruçar-se-á sobre duas questões essenciais.

Primeira, o motivo pelo qual não deve caber ao STF decidir sobre o aborto; segunda, a manobra ilegal da Ministra Rosa Weber em querer incluir esse processo no Plenário Virtual apenas para fazer prevalecer a sua vontade, o que reforçará a primeira questão.
Pois bem. O aborto, as drogas, armas, liberação de jogos de azar e outros temas são enquadrados, de maneira técnica, num conceito que chamamos de desarcados morais razoáveis. A denominação é autoexplicativa, mas vale tratar do significado de cada uma de suas palavras.

Os temas indicados acima como exemplos, por óbvio, não favorecem um acordo ou uma convergência entre todas as pessoas pertencentes à sociedade. Na realidade, existe um grande conflito numérico entre os que entendem pela sua permissibilidade ou sua proibição, assim como pelo tratamento um pouco mais flexível para um lado (permissão parcial) ou para o outro (proibição parcial). Por isso, são temas essencialmente que geram um desacordo ou uma divergência.

Esse desacordo é sobre o conceito de moral. A moral pode ser aquela incorporada pelo próprio indivíduo, como aquela vigente no consciente ou inconsciente coletivo de determinada sociedade, que variará de local para local (região para região ou país para país). Não é a intenção desta coluna tratar sobre a noção de moral. Tal pretensão seria impossível nessa breve coluna, diante da existência de diversos conceitos trazidos pelas correntes filosóficas existentes no decorrer do tempo.

Uma coisa, porém, é verdade: o Estado, no geral, decide sobre a moral. Podemos concordar ou discordar sobre esse ponto. No entanto, ser pragmático é considerar que, sim, elegemos pessoas em eleições periódicas para defender nossos pontos de vista, inclusive aqueles inseridos em temas essencialmente sobre a moral e a justiça. Por isso, é certo que, numa democracia, a arena política decidirá sobre a moral coletiva ou pública da sociedade.

O termo razoável vem na linha de que, como esses temas essencialmente geram divergência, a opinião de cada cidadão, informada ou não, é relevante e deve ser reputada como válida e legítima. O ponto de vista de cada cidadão deve ser considerado para os fins de decisão pela arena política ao tratar sobre tais questões.

A razoabilidade aqui não deve ser avaliada a partir da densidade de argumentos ou do raciocínio de cada opinião, mas sim pelo fato de que é aceita por parcela de grupos de acordo com o costume social vigente ou insurgente em determinado local.

Entender de forma contrária seria o mesmo que criar a falácia do argumento “lugar de fala” apenas para considerar opiniões de pessoas com instrução, o que se trata de uma elitização da opinião a ponto de desconsiderar a maior parcela da população brasileira, o que contraria a própria ideia de governo da maioria do sistema democrático.

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Veja-se, então, que a palavra “desacordo moral razoável”, nada mais, nada menos, revela um tema que é em si objeto de divergência entre as pessoas de determinada sociedade, não tendo nenhuma delas a verdade absoluta sobre ele, razão pela qual, inclusive, pode ser objeto de revisão periódica pela própria sociedade.

E, mais. Essa noção demonstra que a opinião de cada cidadão deve ser considerada por uma arena exclusiva da representação democrática: a política. Quando se fala em arena política, entenda-se aqueles que são eleitos mediante o processo eleitoral. Juízes, no Brasil, não são eleitos pelo povo. Na realidade, a investidura em seu cargo se dá, ou por concurso de provas e títulos (em toda a primeira instância), ou por mérito, antiguidade ou indicação por algum agente político.

O fato de a investidura de algum juiz se dar por indicação de determinado agente político não torna legítima a sua nomeação por aqueles que acreditaram a sua confiança (voto) no político subscritor da indicação. A prática revela que, por vezes, os próprios eleitores do político se sentem não representados, inclusive em sua maioria, sobre os indicados aos Tribunais do Poder Judiciário, tal como o Supremo Tribunal Federal.

Isso demonstra que qualquer Tribunal, inclusive a Suprema Corte do país, não tem o mínimo de legitimidade política e social para decidir sobre questões relacionadas a desacordos morais razoáveis. Acreditar que essa opção é possível por conta da teoria do constitucionalismo, usada pela Ministra Rosa Weber, é o mesmo que utilizar a famosa “teoria da katchanga” para fazer prevalecer a sua vontade pessoal.

É inadmissível entender que o constitucionalismo permite que a Suprema Corte de um país tem a capacidade de decidir contrariamente a decisões políticas adotadas pelo Congresso Nacional, seja através da aprovação de leis, seja mediante rejeição de leis modificadoras da legislação atual.

A única possibilidade de o Supremo agir dessa forma é quando tiver por objetivo tutelar direito fundamental diante de uma decisão que claramente não busca zelar por outro direito fundamental, mas sim aniquilá-lo. É o que se denomina de função contramajoritária do Poder Judiciário, admitida em diversos países ocidentais, tais como Estados Unidos e Alemanha.

A função contramajoritária do Poder Judiciário e, claro, do STF deve ser cautelosa e, sobretudo, não utilizada em casos de desacordos morais razoáveis, uma vez que, sobre tais temas, sempre há a tentativa de escolha por tutelar um direito fundamental em prejuízo de outro, porque estão em conflitos. O caso do aborto inexoravelmente se enquadra nisso (conflito entre direito à vida e à liberdade da mulher).

A cautela e a não utilização como regra devem ocorrer por uma questão lógica: o Poder Judiciário, inclusive o STF, não possui função política! A função de juízes, na tripartição de poderes desde Aristóteles, Locke e Montesquieu, é a de aplicar as leis aprovadas pela arena política. Outras atribuições, admitidas até mesmo pela própria Constituição brasileira, devem ser feitas com bastante cuidado para não incorporar ao Poder Judiciário uma função que não lhe cabe: a política (legislativa, principalmente).

Quando se passa a admitir essa atribuição, até mesmo pela omissão dos próprios atores políticos – como tem acontecido infelizmente no Brasil -, chega-se a um momento em que as decisões políticas são tomadas isoladamente por onze pessoas a ponto de cada uma delas ter o poder de derrubar uma decisão tomada por 584 (quinhentos e oitenta e quatro) pessoas investidas após processo eleitoral.
Trata-se de prática totalmente contrária ao princípio democrático, seja na linha de democracia direta (poder exercido diretamente pelo ponto), seja na direção de democracia indireta (poder exercido por parlamentares eleitos pelo povo).

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Não se está aqui a concluir pela impossibilidade de os atores políticos voltarem a decidir de maneira contraditória, no decorrer dos anos, sobre temas de desacordos morais razoáveis. Ou seja, o Congresso Nacional pode proibir o aborto; anos após, permitir; posteriormente, permitir em determinadas situações; e assim por diante a depender da moral pública vigente na sociedade. Esse raciocínio é idêntico para outros temas inseridos como desacordos morais razoáveis (drogas, armas, jogos de azar, por exemplo).

O que não se pode tolerar, entretanto, é que o Poder Judiciário, sob uma justificativa de autorização pela teoria do constitucionalismo, afirmar que existe um direito fundamental a ser concretizado por uma parcela de opinião dentro de determinado desacordo moral razoável. Veja-se, falar que pessoas possuem uma garantia constitucional de realizar o aborto é o mesmo que dizer que: na minha opinião, a Constituição garante isso, sem que, por vezes, ela fale isso expressamente.

Realizar a construção de um raciocínio para forçar a opinião pessoal de determinado juiz sobre essas questões de desacordo moral razoável é o mesmo que colocar a decisão judicial como algo difícil de ser superado. É criar o cenário, muitas vezes falado, da ditadura da toga, que deve ser compreendida na linha de que a opinião judicial passa a ter maior importância do que a decisão do Congresso Nacional, pelo simples fato de não agradar um juiz ou um Ministro de uma Suprema Corte.

Isso não é viver sob uma democracia, mas sim sob uma opinião de uma minoria de um ou de onze pessoas, ainda que a opinião seja abarcada por uma parcela percentual mínima da população. Novamente, visualizar essa circunstância é essencial para entender que tal raciocínio afronta a própria ideia de a maioria governar numa democracia.

Por essas razões, com todo respeito à Ministra Rosa Weber, é falacioso o argumento de que o STF está autorizado pelo constitucionalismo a decidir sobre o aborto. Na realidade, essa era a vontade pessoal da Ministra para deixar “a sua marca” enquanto magistrada da Suprema Corte.

Essa afirmação não se trata de um ataque pessoal à imagem da Ministra, mas, na verdade, um raciocínio lógico desse colunista a partir dos sucessivos eventos que se passa a expor.

Após a apresentação do voto pela Ministra Rosa Weber, o próximo Presidente do STF, Ministro Luís Roberto Barroso, pediu destaque do caso para julgamento no Plenário físico e presencial de maneira sequencial à apresentação do voto. O pedido de destaque foi feito minutos após a apresentação do voto por quem, num passado não muito longínquo, decidiu na mesma linha de mérito da Ministra Rosa Weber, em sede de habeas corpus.

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Essa circunstância demonstra que a Ministra Rosa Weber quis se valer de uma brecha de mudança regimental promovida recentemente pelo próprio STF, no sentido de que o voto de Ministro, que vier a se aposentar no decorrer do julgamento virtual, seja mantido, ainda que levado ao Plenário físico e presencial por pedido de destaque.

A mudança regimental aconteceu para evitar a burla de que Ministro poderia pedir para que o caso, ainda que tivesse havido a prolação de todos os votos no Plenário Virtual, fosse encaminhado ao Plenário físico e presencial para reiniciar o julgamento. Isso ocorreu, por exemplo, no julgamento sobre a revisão da vida toda dos processos envolvendo o INSS.

Mesmo que a mudança seja dignas de aplausos, na realidade, ela traz um outro problema. O ovo da serpente, para parafrasear o Ministro Toffoli na decisão “da anulação do fim do mundo”, mora no fato de que o voto de Ministro aposentado não pode ser afastado.

Com isso, um Ministro do STF, visualizando sua aposentadoria breve, pode proferir um voto em Plenário Virtual para que sua opinião seja mantida. Foi isso o que ocorreu na ADPF 442, sobretudo porque a ADPF estava pautada para julgamento no Plenário físico e presencial desde o dia 12 de setembro de 2023, sendo levada repentina e ilegalmente a julgamento, pela Ministra Rosa Weber (atual Presidente do STF), no Plenário Virtual no dia 20 de setembro de 2023.

Diga-se ilegalmente, porque o caso somente poderia ter sido submetido a Plenário Virtual se a Ministra tivesse proferido uma decisão liminar para fazer prevalecer a sua vontade ou se o caso fosse amparado em decisões reiterada da Suprema Corte no mesmo sentido. Ambas as hipóteses não ocorreram.

Por isso, é bastante claro que a manobra de inclusão no Plenário Virtual teve como escopo o desejo da Ministra Rosa Weber evitar que não se pronunciasse sobre esse caso antes de se aposentar, a fim de que a sua opinião permanecesse para além de sua aposentadoria, deixando “a sua marca” enquanto Ministra da Suprema Corte.

Isso evidencia, caro leitor e cara leitora, a impossibilidade de se admitir que o STF tenha o poder para decidir sobre desacordos morais razoáveis, uma vez que os Ministros passam a realizar, dentro das normas existentes, um jogo de prevalência de sua vontade sobre assuntos não consensuais na sociedade.

A vontade de um juiz/Ministro não pode superar a decisão tomada pelo Congresso Nacional, sobretudo em um tema, como o aborto, que, em vários momentos, foi expressamente rejeitado pelo Parlamento ao não aprovar mudanças no Código Penal para flexibilizar a criminalização do aborto.

A decisão correta a ser tomada pelos demais Ministros é usar a autocontenção judicial para decidir que esse tema e outros incluídos como desacordos morais razoáveis são de atribuição exclusiva do Congresso Nacional, dentro da tripartição de Poderes de uma república e de uma democracia, já que é o Poder competente para dar a palavra final sobre esse assunto.

*Mariano é Procurador Federal (AGU/PGF), Mestre em Direito da Cidade (UERJ) e em Direito e Políticas Públicas (UNIRIO) e Especialista em Direito Administrativo Econômico (PUC-Rio).

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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