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Os erros da decisão do STF sobre o acordo de leniência da Odebrecht

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Por Mariano*

No dia 6 de setembro de 2023, o Brasil foi pego de surpresa por uma decisão monocrática da Suprema Corte que invalidou todas as provas obtidas através do acordo de leniência celebrado entre a empresa Odebrecht – agora, Novonor – e o Ministério Público Federal no ano de 2017.

A decisão foi proferida em sede de reclamação constitucional (Rcl 43.007/DF). É bom esclarecer que, conceitualmente, esse instrumento processual visa, em resumo, assegurar o cumprimento de determinada decisão tomada pelo órgão do Poder Judiciário – no caso, o Supremo Tribunal Federal. 

Na hipótese, os advogados do atual Presidente da República, ao ajuizarem a Rcl 43.007/DF, apontaram que o Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba estava descumprindo decisões que determinavam, com base na súmula vinculante 14, a obrigatoriedade do fornecimento de todos os documentos prévios, concomitantes e posteriores obtidos por meio do acordo de leniência celebrado e homologado judicialmente, em 2017, entre o MPF e a Odebrecht.

Segundo a decisão de 135 (cento e trinta e cinco) páginas do Ministro Relator Dias Toffoli, a invalidação dos elementos de prova oriundos do acordo dar-se-ia por dois motivos: (i) violação da cadeia de custódia das provas obtidas e (ii) ausência de formalização de acordo de cooperação jurídica internacional entre Brasil, Estados Unidos da América e Suíça acerca do compartilhamento e da análise de sistemas da Odebrecht, nos quais havia provas da prática de atos de corrupção.

Para auxiliar aqueles leitores ou aquelas leitoras que não possuem conhecimento jurídico, é importante esclarecer três noções.

A primeira de acordo de leniência. Como o nome próprio diz, trata-se de um acordo celebrado entre a autoridade estatal competente e o infrator, mediante o qual esse último assume alguns compromissos, inclusive o de denúncia de demais envolvidos no ilícito e o de apresentação de provas novas sobre a atividade ilícita, com a contraprestação do Estado deixá-lo de puni-lo ou diminuir a sua punição.

A segunda sobre cadeia de custódia. Em palavras simples, trata-se do rito legal ou normativo de obtenção, de exame e de guarda de documentos e de demais provas obtidas através de atividade investigatória, cuja observância leva à presunção de autenticidade e de veracidade.

A terceira, por fim, diz respeito ao acordo de cooperação jurídica internacional. Trata-se de instrumento de negociação entre autoridades públicas de países estrangeiros para que possam obter acesso a provas ou exercer sua competência em locais que não possuem poder algum, já que esse é limitado ao território nacional do país do qual fazem parte.

Contextualizar a decisão tomada pelo Ministro Relator da Rcl 43.007/DF e o instrumento processual no qual adotada (reclamação constitucional) é essencial para a montagem desse quebra-cabeça relativo às críticas jurídicas. Essa coluna, é bom dizer, não é uma crítica pessoal a quem quer que seja e nem mesmo reflete a posição da instituição à qual esse autor está vinculado.

Pois bem. Como visto, qualquer reclamação constitucional, enquanto instrumento processual, somente pode ter por objetivo efetivar o cumprimento de determinada ordem judicial. Nenhuma previsão legal ou normativa permite que a reclamação constitucional seja utilizada para anular ou suspender todos os efeitos derivados de um ato que nem mesmo foi diretamente impugnado na reclamação – no caso, o acordo de leniência celebrado entre o MPF e a Odebrecht (agora, Novonor).

Ou seja, com todo respeito, a decisão judicial ultrapassou os limites legais e os conceitos do próprio instituto da reclamação constitucional, ao declarar que as causas que levaram à declaração de imprestabilidade dos referidos elementos de prova são objetivas, não se restringindo ao universo subjetivo do reclamante, razão pela qual o reconhecimento da referida imprestabilidade deve ser estendido a todos os feitos que tenham se utilizado de tais elementos, seja na esfera criminal, seja na esfera eleitoral, seja em processos envolvendo ato de improbidade administrativa, seja, ainda, na esfera cível (trecho extraído da própria decisão judicial).

Primeiro, porque, em nenhum momento, na Rcl 43.007/DF, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal ou outro órgão da Suprema Corte declarou a invalidade dos elementos de prova do acordo celebrado entre o MPF e a Odebrecht. O único acordo de leniência ofertado pelo MPF, cujos efeitos foram suspensos, diz respeito ao celebrado com a Petrobras (ADPFs 568/DF e 569/DF).

Na realidade, a Segunda Turma do STF, em diversas ocasiões, indeferiu o pedido de extensão de efeitos ao acesso de material da Operação Spoofing a outros investigados, que buscavam obter decisão judicial similar determinada em favor do atual Presidente da República na Rcl 43.007/DF. Aliás, em nenhum momento, a Segunda Turma considerou os elementos de prova obtidos pelo acordo de leniência como nulos.

Em todas as decisões de indeferimento, a Segunda Turma pronunciou-se no sentido de que não era possível utilizar a reclamação constitucional e, ainda, pedidos de extensão nessa mesma Rcl 43.007/DF para impugnar decisões de processos distintos para beneficiar outros réus. Veja-se, então, que a decisão judicial monocrática foi contra o próprio entendimento da Segunda Turma.

A decisão monocrática na Rcl 43.007/DF violou, no mínimo, o que se chama em direito de princípio da colegialidade, de acordo com o qual as decisões judiciais devem ser tomadas por órgão colegiado do Poder Judiciário e, por consequência, esses pronunciamentos devem ser observados pelos juízes isoladamente em suas decisões. No caso, como a Segunda Turma do STF já havia indeferido esses pedidos de extensão, não poderia monocraticamente haver uma extensão de pedido, que, aliás, nem mesmo é objeto da reclamação (a anulação dos elementos de prova do acordo de leniência).

Diga-se, no mínimo, pelo fato de que há outros equívocos processuais, tais como, por exemplo, a violação ao princípio de que o juiz não pode agir de ofício, mas tão somente quando provocado (ne procedat iudex ex officio), e a transgressão ao princípio da adstrição da decisão ao pedido – segundo o qual o juiz somente pode decidir sobre o que foi pedido na ação (no caso, foi pedido apenas a anulação de decisões do Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR, e não do acordo de leniência e das provas obtidas).

Mais do que erros processuais, a decisão judicial, com todo o respeito, incorre em equívoco do que se chama violação a direito material – ou seja, de normas de conteúdo, e não normas de procedimento ou de processo.

Ora, não seria possível apontar que haveria nulidade de todos os elementos de prova obtidos através do acordo de leniência celebrado entre o MPF e a empresa Odebrecht, pois as provas foram entregues por vontade da própria empresa Odebrecht, que figurava como infratora leniente, para preencher os pressupostos legais para a celebração do acordo de leniência.

O acordo de leniência somente é possível de ser firmado, nos termos do art. 16 da Lei nº 12.846, de 2013 (Lei Anticorrupção), quando o infrator leniente cooperar com as investigações mediante a identificação dos demais envolvidos na infração e a assunção de compromisso de obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.

Aliás, esses compromissos foram expressamente assumidos nas cláusulas quarta, sexta e nona do acordo de leniência, com a indicação de que todos os fatos e todas as provas encaminhadas são verdadeiras e precisas (acesso à íntegra do acordo em https://www.conjur.com.br/dl/acordo-leniencia-odebrecht-mpf.pdf).

Em nenhum momento, a empresa Odebrecht apontou que sofreu coação ou algum tipo de pressão para a celebração do acordo em razão de investigações de autoridades estrangeiras, razão pela qual a emissão de sua vontade foi livre, estando ausente qualquer vício que possa tornar nulo ou anulável esse acordo.

Com certeza, o motivo para a celebração do acordo de leniência pela empresa Odebrecht foi o mesmo de todas as empresas envolvidas em casos de corrupção: obter as facilidades legais de diminuição ou de isenção da pena, a depender do caso e do grau de cooperação com as investigações, e, com isso, evitar grandes prejuízos financeiros e econômicos.

Essa circunstância evidencia que eventuais argumentos de formalidade – como suposta falta de acordo de cooperação jurídica internacional – não podem levar à nulidade, por si só, de todos os elementos de prova apresentados pela empresa Odebrecht. Aliás, ainda que fosse possível, apenas parte do acordo de leniência seria nulo, em específico na parte de destinação de recursos a países estrangeiros.

Pois, vige, no direito brasileiro, o chamado princípio da conservação dos negócios jurídicos. Negócio jurídico é, em palavras simples, um acordo ou um contrato. De acordo com aquele princípio, a regra deve ser a conservação da validade e dos efeitos do negócio jurídico, sendo a exceção a sua anulação. O Poder Judiciário deve, então, buscar toda a interpretação e a aplicação da norma jurídica para manter o negócio jurídico intacto.

Assim, o Supremo Tribunal Federal, caso fosse invalidar o acordo de leniência – que, obviamente, é um negócio jurídico – por ausência de cooperação jurídica internacional, deveria tê-lo feito apenas em relação às cláusulas de destinação de verbas para as autoridades competentes dos Estados Unidos e da Suíça, e nunca anular o acordo e os elementos de prova obtidos como um todo.

Sobre os elementos de prova, ainda é importante destacar que a suposta violação da cadeia de custódia foi baseada em vazamento de diálogos entre autoridades, que, ainda, não se sabem verídicas e autênticas. Assim, pronunciar uma decisão de invalidade de provas a partir de provas, que nem mesmo se sabe se são válidas, é, com todo o respeito, tomar uma decisão sem fundamento de validade sem pensar nas consequências da própria imagem de combate à corrupção que o Brasil deve dar ao ambiente internacional e à sociedade brasileira.

Agir sem considerar as consequências é claramente rechaçado pelo direito brasileiro, nos termos do art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Todo juiz, inclusive da Suprema Corte, antes de decidir, deve levar em conta os impactos de sua decisão, inclusive para a coletividade e para o respeito aos próprios tratados internacionais de combate à corrupção celebrados pelo Brasil.

A respeito de tratados internacionais, aliás, é bom salientar que essa decisão vulnera, com todo o respeito, o princípio básico de que a cooperação entre autoridades internacionais no combate à corrupção deve ser mais célere e eficiente, como prevê o artigo 9º da Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, incorporada pelo Brasil através do Decreto nº 3.678, de 2000.

Tudo isso está a apontar que a decisão judicial monocrática da Rcl 43.007/DF incorreu em erros processuais e materiais ao anular os efeitos dos elementos de prova do acordo de leniência celebrado entre o MPF e a empresa Odebrecht, inclusive com extensão de seus efeitos contra todas as ações judiciais que o utilizaram como fundamento para punir criminal ou civilmente autoridades públicas praticantes de atos de corrupção.

Como último ponto desse artigo, me parece ser necessário apresentar uma resposta às diversas dúvidas surgidas a partir da decisão judicial, como, por exemplo: (i) a empresa Odebrecht não estará mais obrigada a devolver qualquer dinheiro?; (ii) os recursos já devolvidos deverão ser ressarcidos pela sociedade brasileira em favor da empresa?; (iii) a empresa poderá pedir indenização contra a União – e, por consequência, contra nós contribuintes – pelos supostos atos ilegais cometidos pelo MPF?

As respostas, é claro, caro leitor ou cara leitora, só virá com o tempo. Porém, posso concluir, com todo respeito a entendimento contrário, que o direito nos apresenta soluções de que todas as respostas devem ser negativas.

Com base no mesmo princípio da conservação dos negócios jurídicos, é essencial indicar que eventual nulidade dos elementos de prova não tem nenhuma relação com a declaração de vontade da empresa Odebrecht na confissão de infrações ou na assunção de compromissos de ressarcimento de valores bilionários aos cofres públicos, mas sim a eventuais efeitos dos elementos de prova apresentados.

Ou seja, o acordo de leniência não é nulo ou anulável pelo Poder Judiciário, já que celebrado entre partes legítimas, além de ter observado os requisitos e os pressupostos legais para a sua celebração.

O único motivo razoável para a sua anulação seria a existência de vícios de vontade (de consentimento), que, no caso, por óbvio, não ocorreram, já que a pretensão da empresa Odebrecht foi evitar a sua sujeição a diversas ações judiciais, como ficou expresso na cláusula oitava do acordo de leniência celebrado com o MPF. Tanto é assim que também, no ano de 2018, celebrou acordo de leniência com a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União, envolvendo fatos similares ou conexos.

Por isso, penso que, mesmo que em um cenário inoportuno e infeliz de anulação dos efeitos dos elementos de prova, a empresa Odebrecht juridicamente não tem direito a nenhuma resposta afirmativa às dúvidas acima – e, logo, direito a ressarcimento ou a indenização -, sob pena de violação clara ao princípio da conservação dos negócios jurídicos que se encontra expresso no art. 170 do Código Civil.

*Mariano é Procurador Federal (AGU/PGF), Mestre em Direito e Políticas Públicas (UNIRIO) e em Direito das Cidades (UERJ), Especialista em Direito Administrativo Econômico (PUC-Rio) e Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro.

 ¹Súmula Vinculante 14/STF: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

²Das dezenas de decisões proferidas, o fundamento utilizado é o seguinte: […] I – o deferimento de pedidos de extensão decorre, substancialmente, do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal, sendo necessário, primeiro, que tenha havido concurso de agentes e, depois, que a eventual extensão da decisão que beneficia um dos réus não seja fundada em motivos de caráter exclusivamente pessoal. Assim tem entendido a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal em casos análogos nestes mesmos autos. II Não é cabível o manejo da reclamação constitucional – e, mutatis mutandis, de pedidos de extensão – para garantia da autoridade das decisões pretorianas proferidas em processos nos quais os postulantes não integraram a relação processual antecedente, quando delas decorram somente efeitos inter partes. III – Para que houvesse as extensões requeridas nestes autos seria preciso o ajuste, com exatidão e pertinência, entre a providência que se busca e o paradigma apontado pelos requerentes, o que somente é admitido quando há demonstração, por intermédio de prova documental inequívoca, de absoluta aderência entre o julgado invocado e as decisões recorridas, o que, respeitadas as alegações aduzidas, não é o caso na hipótese. IV Daí porque não há falar em afronta aos paradigmas invocados, o que inviabiliza a utilização prematura ou preventiva deste pleito de extensão, que possui requisitos próprios de cabimento, somente quando observado o efetivo descumprimento ou inobservância das decisões judiciais ou súmulas vinculantes desta Suprema Corte. Não se pode ampliar o alcance dos efeitos implementados nestes autos, sob pena de transformar esta via em verdadeiro sucedâneo do recurso, formulando-se pretensões diretamente perante o órgão máximo do Poder Judiciário.

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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