fbpx

Pode o sistema político reclamar do ativismo judicial?

Compartilhe

Por Mariano*

Confesso que o dia a dia de julgamento de casos pelo Poder Judiciário tem causado um problema na escolha do tema. Na semana passada, houve julgamentos importantes iniciados e concluídos pelo Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, a previsão de critérios objetivos para diferenciar o usuário do traficante de drogas, a omissão do Congresso Nacional em redistribuir o número de cadeiras de deputados federais e a reafirmação de que as Guardas Municipais são órgãos de segurança pública.

É um problema, mas, como falamos no dia a dia, é um problema bom, pois nos abre uma gama de possibilidades. Nessa gama de possibilidades, há opção de tratar de um tema para reflexão mais amplo. No caso, a questão do ativismo judicial. Não irei aqui gastar o seu tempo na leitura sobre críticas ao ativismo judicial e indicar eventuais caminhos para a sua limitação. Deixarei isso para uma próxima oportunidade.

O ponto de reflexão aqui é: será que o sistema político atual pode reclamar abertamente do ativismo feito pelo Poder Judiciário? Bom, espero que eu consiga trazer essa reflexão a você, caro leitor e cara leitora, para, ao final, ainda que possamos divergir (um viva a isso!), cheguemos a uma resposta.

Pois bem. É importante destacar que o Poder Judiciário, inclusive o STF, como regra, apenas atua quando é provocado por alguém. Esse alguém pode ser uma pessoa física, uma pessoa jurídica, um partido político, um parlamentar ou qualquer outra autoridade. Ou seja, uma decisão judicial não surge se o juiz não for acionado por alguém. Trata-se uma regra secular no Direito e que possui até uma expressão em latim (ne procedat iudex ex officio).

Colocar esse ponto, de início, demonstra que, por exemplo, o STF somente decide sobre costumes (descriminalização de drogas, aborto e outras questões) quando é provocado. Inúmeros artigos jurídicos e estudos de observatórios jurídicos têm indicado o crescimento, no decorrer dos anos, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, de ações judiciais feitas por partidos políticos para decidir questões constitucionais relevantes.

Essa postura fez com que o Poder Judiciário, inclusive o STF, incorporasse inconscientemente a ideia de que as discussões públicas relevantes para o país devessem ser resolvidas através de um processo judicial. Infelizmente, não se trata de uma opinião enviesada, mas de um fato que, por exemplo, pode ser elucidado pela mudança de postura do Supremo acerca da forma e do conteúdo de decisão em ação que visa decretar uma inconstitucionalidade por omissão do Poder Executivo ou do Poder Legislativo (ação direto de inconstitucionalidade por omissão ou mandado de injunção).

Sobre isso, indica-se que, até os anos de 2009, o STF entendia que somente lhe caberia, ao constatar uma omissão inconstitucional na edição de normas pelo Poder Legislativo ou Executivo, fixar um prazo para a edição da lei, sem a previsão de qualquer consequência no caso de descumprimento. Agora o cenário mudou.

Caso emblemático disso nessa semana foi a decisão do STF que estabeleceu o limite até 30 de junho de 2025 para que o Congresso Nacional edite lei complementar para promover a redistribuição do número de cadeiras de deputados federais entre os Estados da Federação, considerando o quantitativo populacional do Censo de 2022 feito pelo IBGE. No caso de não observar esse prazo, o TSE estará autorizado a suprir essa omissão. Aliás, indica-se que o STF tinha decidido anos atrás que o TSE não poderia exercer essa atividade, ainda que tivesse previsão expressa nesse sentido aprovada pelo Congresso Nacional (art. 1º da Lei Complementar nº 78, de 1993).

O Censo de 2022 é objeto de críticas e de divergências entre diversas Prefeituras Municipais e parlamentares federais, assim como entre entidades da sociedade civil. Independentemente do mérito das reclamações, é certo que a existência desse fato demonstra que há um problema político muito maior do que já ocorreria se houvesse a simples necessidade de decisão política pelo Congresso sobre a redistribuição do número de vagas de deputados federais, que, aliás, se encontra em diversos projetos de lei em tramitação.
Esse é o ponto que se deve debruçar: a existência de problema político. A política em si é a arte de fazer o possível e, dentro das divergências de ideias, encontrar a virtude do caminho do meio numa acomodação de interesses legítimos e republicanos. Por isso, fazer política exige esforço, energia, tempo, paciência e ação por parte de atores políticos.

Talvez, a maioria dos temas seja tão delicados e complexos que a imagem de determinado parlamentar ou chefe do Executivo (Prefeito, Governador ou Presidente) sempre estará sujeita a algum risco. Porém, quem deseja ser representante do povo (legítimo possuidor do poder – art. 1º, parágrafo único, da Constituição de 1988) não pode ter medo de debater temas considerados relevantes para e pela sociedade brasileira, como uma forma de evitar críticas.

Infelizmente, o peso da manutenção de prestígio da imagem perante o eleitorado faz com que os políticos no geral deixem de lado discussões públicas de interesse legítimo da sociedade, pois o importante é a próxima eleição que está por vir. Em razão disso, a opção mais confortável que se apresenta a eles é: socorrer-se do Poder Judiciário para decidir essas questões constitucionais relevantes. E, por que?

Simples: os juízes não ocupam seus cargos a partir de uma votação pela população, mas sim chegam à posição de membro do Poder Judiciário através de concurso público dificílimo de provas e títulos. Nem mesmo os Ministro do STF, que são investidos através de um processo político (indicação do Presidente da República e análise pelo Senado Federal), são submetidos ao crivo direto da população, tal como acontece com os parlamentares e chefes do Poder Executivo (Prefeitos, Governadores e Presidente da República).

Por isso, caso a sociedade não goste do resultado na análise da questão constitucional relevante, os políticos não assumem o ônus de terem sido os responsáveis pela tomada de decisão e, por consequência, ficam livres para criticar a posição adotada a depender do termômetro das urnas.

Repare, caro leitor e cara leitora, que o ativismo judicial é um veneno para o sistema democrático e republicano atual por diversos motivos, mas o principal, para os fins desta coluna de hoje, é que ele serve como uma cobertura para que o sistema político não dê uma resposta, qualquer que seja ela, a um problema público e/ou social por receio de perda de votos.

Então, como resposta à pergunta desta reflexão, pode-se concluir que o sistema político não pode reclamar do ativismo judicial, quando ele é um dos causadores desse problema. Aliás, é bom destacar que considero o ativismo judicial como uma atividade de interpretação ou de aplicação de normas jurídicas além dos limites previstos na lei ou na constituição, inclusive nos casos em que há uma decisão contrária ao próprio sentido das palavras do texto da lei ou da constituição ou numa mudança da jurisprudência (decisões reiteradas de um Tribunal num mesmo sentido sobre um tema) apenas para privilegiar a posição de poder do Judiciário.
Por exemplo, colocar o STF para decidir como serão resolvidos os problemas do número de cadeiras de deputados federais a partir dos dados do Censo de 2022 do IBGE, da inclusão, ou não, da Guarda Municipal como um dos órgãos de segurança no art. 144 da Constituição Federal – e, com isso, permitir o exercício de revista pessoal ou de prisão de criminosos – ou de qual será o limite para considerar penalmente um indivíduo como usuário ou traficante de drogas.

Todas essas questões devem ser enfrentadas com coragem pelos políticos (parlamentares e chefes do Poder Executivo), cuja decisão deve ser respeitada pelo Poder Judiciário. Juízes não foram pensados no sistema de repartição de Poderes para colocarem sua agenda pessoal e filosófica acima das leis e da constituição, mas sim foram concebidos para aplicarem a decisão tomada pelos representantes do povo.

A falta de coragem do atual sistema político em dar uma resposta, qualquer que seja ela, cria uma situação em que se aplica claramente o famoso ditado de que não existe vácuo de poder. Quem ocupará esse espaço será o Poder Judiciário, principalmente porque o sistema político (políticos e partidos políticos) tem cada vez mais usado ações judiciais para empregarem a interpretação que lhes parece mais correta e que, por vezes, foi vencida nos debates parlamentares.

Não há como se pensar numa reclamação seletiva do ativismo judicial. Isto é, só se reclama do ativismos quando atingir os meus interesses eleitorais ou de meus eleitores diretamente ou se aplaude o ativismo quando for favorável aos meus interesses ou de meus eleitores. Agir assim é se esquecer que, independentemente do resultado ser favorável para A ou para B, o ativismo judicial é um veneno para o amadurecimento da cidadania e para o incremento da liberdade política e individual dos cidadãos na condução dos rumos de sua vida particular e social.

Por isso, ainda que você, caro leitor ou cara leitora, não concorde, deixo aqui a minha resposta: o atual sistema político não pode reclamar do ativismo judicial. Se quiser fazê-lo, deverá começar a olhar para si próprio, realizar uma autorreflexão e compreender que a tomada de decisão sobre os rumos de questões públicas e/ou sociais deve ser de políticos, e não de juízes.

Espero que, daqui a alguns anos, posso reescrever sobre esse mesmo tema e dizer que evoluímos. Por agora, só me resta participar, assim como você, da nossa vida pública através do voto nas eleições vindouras para permitir a chegada ou o aumento de políticos que têm a coragem de defender seus pontos de vista, que, aliás, devem estar de acordo com o que pensa a sociedade brasileira. Até lá, permaneçamos vigilantes e pensativos sobre a forma como devemos reconfigurar o nosso sistema político e de justiça.

*Mariano é Procurador Federal (AGU/PGF), Mestre em Direito e Políticas Públicas (UNIRIO) e em Direito das Cidades (UERJ), Especialista em Direito Administrativo Econômico (PUC-Rio) e em Direito Administrativo (UCAM) e Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (IDARJ).

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

Mais Opinião

plugins premium WordPress
Are you sure want to unlock this post?
Unlock left : 0
Are you sure want to cancel subscription?