*Marcus Vinicius Dias
É bem possível que você nunca tenha ouvido falar de Edward Jenner mas, em alguma medida, se hoje eu estou escrevendo _e você lendo_ este texto é porque pessoas como Jenner existiram e tornaram a nossa vida na Terra mais segura. Mais do que qualquer outro médico, Jenner ajudou a salvar vidas. Formado na Grã-Bretanha do século XVIII, foi treinado em cirurgia e anatomia por gente como John Hunter, o célebre cirurgião ainda hoje reconhecido pelas suas contribuições nestas áreas. Mas foi na abordagem imunológica da varíola que Jenner imortalizou seu nome no panteão dos grandes médicos e cientistas de todos os tempos: ao observar que as ordenhadeiras das vacas infectadas com a varíola bovina eram imunes à varíola humana, Jenner teorizou que ao entrar em contato com as secreções das vesículas varíolicas das vacas, elas adquiriam uma proteção contra a moléstia humana, num fenômeno hoje conhecido como imunidade cruzada.
A partir desta observação desenvolveu todo o seu trabalho que culminou com a revolucionária técnica que consistiu, inicialmente, em inocular o vírus da varíola bovina, contido em secreções do gado, em humanos e, por meio deste contato, assegurar uma proteção que fosse capaz de evitar o contágio pela forma humana do vírus ou, ao menos, que uma vez infectada, a pessoa não desenvolvesse uma forma grave da doença. Assim nascia a vacinação, termo cunhado em referência ao nome do vírus bovino da varíola, Variolae vaccinae.
Não restam dúvidas que de lá para cá essa ação humana transformou o curso da História, tratando-se, portanto, de uma verdadeira revolução. Também é patente que desde a técnica seminal, até à atualidade, modificações e aperfeiçoamentos ocorreram, de modo que ninguém vai ao posto de saúde e recebe no braço ou na boca uma secreção animal. Mas não é difícil supor que até ser consagrada como cientificamente comprovada muitos questionamentos, ensaios e testes, equívocos e efeitos colaterais, ocorreram até que o procedimento se tornasse efetivamente seguro e, o mais importante, socialmente aceito como tal.
Mas aquilo que salvou nossos tataravós, e portanto nos permitiu chegar até aqui, atualmente está em xeque. Hoje o mundo vacina menos que outrora, embora, em retrospectiva, aja uma oferta historicamente maior de imunizantes disponíveis para a população. Como toda mudança de tendência comportamental, a queda da adesão das pessoas à vacinação é multifatorial e complexa e, para ser revertida, precisa de um diagnóstico sistêmico e um remédio multivalente. Olhar apenas um aspecto e atacá-lo por uma só frente é o equivalente a tratar uma infecção bacteriana por múltiplos patógenos com apenas um antibiótico. Neste mesmo sentido, reduzir a complexidade do tema a uma única narrativa é o equivalente a tratar de modo ambulatorial um paciente em estado grave.
A primeira razão para a diminuição do consumo de um produto, qualquer estudante de primeiro período de marketing sabe, é a percepção, por parte do consumidor, de que ele se tornou desnecessário ou obsoleto. Com a vacina não é diferente. À medida que tivemos uma ampliação da cobertura vacinal, e consequente erradicação de doenças graves que nos atemorizavam há décadas, nosso senso de gravidade e urgência foi desativado. E isso nos levou a desvalorizar a vacina. Prova disso é a terrível poliomielite, que vitimou e sequelou gerações de jovens no Brasil, mas desde 1989, felizmente, não acomete ninguém em nosso país. Ao não ter vivido ou ouvido falar da paralisia infantil, as mães e pais das nossas crianças não enxergam a necessidade de levar seus filhos para tomar a gotinha. No sentido contrário, em 2021, quando milhares de pessoas morriam no país em decorrência de complicações da COVID 19, o desejo de se vacinar era o imperativo do brasileiro. Quem aqui não procurou saber sobre onde estava sendo aplicada a vacina de modo mais rápido? Quem aqui não ouviu relatos dos chamados “fura-fila” de vacinação? A percepção de gravidade nos faz buscar um meio de segurança.
Outros aspecto que concorre para isso é a facilidade da circulação de opiniões e idéias trazidas pela difusão das redes sociais. Os hoje denominados grupos anti vax sempre existiram. E há muito tempo são minoritários, estatisticamente insignificantes. Aja vista o sucesso histórico do nosso Programa Nacional de Imunização que, em determinadas campanhas, obtinha mais de 90% do público alvo imunizado, ou seja, um sucesso. Mas com o advento da internet, aqueles que se recusavam a tomar as vacinas passaram a ampliar sua voz e, portanto, a influenciar, negativamente, alguns mais sucetíveis a não se vacinarem. O problema crucial disso é que enquanto essa minoria era solitária, ainda que não vacinada, por efeito da imunidade coletiva conferida pelos altos índices de vacinação da população, estava protegida, uma vez que o vírus não mais circulava no nosso meio. Mas ao ganhar adeptos na parte da sociedade que não é propriamente anti vacina, mas também não enxerga mais a real importância da vacinação, colocou em risco a erradicação do vírus, visto que o percentual de vacinados despencou e, assim, abriu espaço para que ele voltasse a circular.
Uma outra questão chave, e mais recente, ocorreu em virtude da vacinação de COVID 19. Estando acostumada à vacinas que nos últimos tempos conferiam imunidade total, eliminando, portanto, o risco de se contrair a doença, a população, que num primeiro momento aderiu em massa à vacinação, ficou ressabiada em seguir o esquema vacinal proposto com as doses subsequentes ao se ver acometida pela forma leve da doença. É bem verdade que a indústria num primeiro momento foi efusiva em propagandear a imunidade, mas não foi devidamente eficiente em recuar e admitir, de modo franco e transparente, que o que estava, de fato, sendo entregue era uma proteção individual e coletiva _ importantíssima, claro _ contra as formas graves da doença. Não há dúvidas que isso, em alguma medida, influenciou a diminuição das taxas de vacinação. E atacar este ponto de frente é parte da solução.
Em nenhuma democracia há monopólio ou exclusivismo do debate público. Mas a história intelectual do ocidente, inaugurada, por assim dizer, pelos gregos, nos ensinou que toda discussão científica começa com o chamado status quaestionis, que nada mais é do que um compilado do que já foi dito anteriormente pelos sábios sobre o assunto. Portanto, o ponto de partida de qualquer debate requer uma dialética que, por meio da confrontação das opiniões dos estudiosos do tema, gera um conhecimento novo lançando luz sobre a discussão. No entanto, o que temos assistido recentemente são expertos de última hora, sem a devida bagagem prévia para entrar na temática, e sem a necessária densidade de conhecimento para fazer um juízo crítico sobre a vacinação, por exemplo, e seus desafios. Sem falar em algo escatológico como correlacionar a adesão ou a recusa à vacinação a uma esfera ideológica, como se o fato de se avaliar a custo efetividade de uma estratégia sanitária se submetesse a uma agenda pré queda do Muro de Berlim.
Os desafios principais me parecem estes. Mas o central talvez seja reconhecer que não se trata de um problema de governo, nem de estado, tampouco de partido, mas da sociedade. E algumas conclusões me parecem auto evidentes. Atribuir a uma corrente política, diga-se de passagem derrotada nas urnas, a baixa adesão da população às vacinas é algo simplório e inverossímil. Tivesse esta corrente tamanha força e poder de influência, o resultado eleitoral teria sido diverso. Do mesmo modo, atacar apenas os movimentos anti vacina e suas postagens em ambiente virtual, é ignorar o fato de que em 2021 o Brasil se vacinou como poucos países no mundo para COVID, em que pese a existência de propagandas nas redes sociais em contrário. É necessário olhar para o retrovisor e reaprender com o passado. Lembrar aos mais jovens do que foi as epidemias da varíola, de como se morria de sarampo, do quão ardilosa era a catapora e, especialmente, o quanto causou dor e sofrimento a paralisia infantil. Para isso é necessário, por parte das autoridades sanitárias, rever a estratégia de comunicação do Zé Gotinha que, cá entre nós, no seu formato original, não se comunica hoje em dia com mais ninguém. Do mesmo modo, há que se resgatar a idéia fundadora, e revolucionária, repito, de Edward Jenner, de que a vacinação deve imunizar, claro, o máximo possível, mas proteger das formas graves, sempre. E aí o papel da comunidade científica e industrial nesse processo é fundamental. E, por fim, tratar os extremistas anti vax com o antídoto mais eficaz contra a ignorância: a informação; e não cometer o erro fatal de confundir aqueles que criticamente pontuam eventuais incongruências e falhas do sistema, de modo propositivo, com os extremistas. Numa luta em que se começa a sofrer baixas em nossas fileiras, denominar soldados, que eventualmente questionam a estratégia de batalha e as motivações da guerra, como negacionistas, ou algo neste sentido, pode ajudar a formar um bom lide jornalístico mas, efetivamente, não auxilia a vacinar ninguém.
*Graduado em Medicina pela UFF, com MBA em Gestão em Saúde pela USP e Mestre em Economia pelo IBMEC.