Por Izabela Patriota*
Apesar das fake news serem um tema central no debate público, é preciso cautela na forma como pretendemos concretizar medidas para combater, punir e prevenir a sua propagação. Em debates de políticas públicas, tão importante quanto demonstrar “fazer algo”, é atuar de forma a impedir políticas ruins. O papel das plataformas pode ter se alterado drasticamente desde o seu berço, porém, o seu caráter precípuo se manteve: o de criar um ambiente para propagação e interação de ideias entre os usuários.
Com tanta pressão e volatilidade sobre o seu ponto ótimo de performance, não apenas há movimentos privados que encorajam ferramentas de autorregulação, como também ferramentas estatais de regulação. Na esfera da autorregulação, as próprias plataformas encontram embaraços tanto técnicos como filosóficos para prevenção de condutas inautênticas. Não poderia ser diferente, ou ainda mais difícil, na esfera pública. A depender das medidas adotadas por ambos os lados, o resultado pode tanto desencorajar a propagação genuína de ideias, como criar um tribunal arbitral da verdade – ou da autenticidade.
Falando especificamente da tentativa regulatória brasileira em trâmite no Congresso, além da implementação de um regime soviético de invasão na gestão interna das plataformas (com a criação de um conselho de burocratas), o maior receio vem da tentativa prévia e abstrata de tipificar o que seriam contas e condutas inautênticas. Apesar de expressamente excetuar o intuito humorístico e de paródia do seu rol de inautenticidade, as consequências de sua interpretação, pública e privada, podem caminhar para um cenário bastante ultrapassado.
A subjetividade da nova regulação abriria margem para a discricionariedade das plataformas, em última análise do Poder Judiciário, fazerem a identificação de contas autênticas desconsiderando a moderna pragmática da linguagem. As palavras e o que é escrito, sobretudo em ambientes informais e livres, tem o seu sentido dependente do contexto no qual se inserem. Trata-se de uma análise do significado invisível, isto é, sobre como os indivíduos são capazes de reconhecer conceitos mesmo quando algo não é explicitamente escrito ou falado.
Duas palavras são essenciais no contexto da pragmática: co-texto e contexto. Os textos não possuem somente uma dimensão gramatical, semântica ou sintática, possuem sobretudo uma intenção comunicativa, uma construção de sentido que só será perfeitamente apreendida pelo intérprete com a correta visualização do contexto e dos textos com os quais diretamente se relaciona, ou seja, o co-texto. Estar em sintonia com esses mecanismos linguísticos está longe da factualidade preventiva, seja pelas próprias plataformas, seja pelo poder público. Não à toa, amparadas nas controvérsias e dificuldades preventivas e à luz dos ditames constitucionais brasileiros, as plataformas estão cada vez mais atuantes no combate posterior das condutas abusivas no exercício das diversas liberdades dos usuários no âmbito da internet.
Desde o início da pandemia e mais incisivamente nos últimos meses e semanas, há indicação nas próprias plataformas do que seriam conteúdos controversos, conteúdos falsos e suspensão de contas reconhecidamente inautênticas pelas redes, mesmo com essas tais boas intenções, contudo, páginas eminentemente satíricas como “O Sensacionalista” relata confusão das plataformas ao indicar seus conteúdos humorísticos como inautênticos.
Tanto o argumento constitucional quanto o argumento linguístico conduzem à falência da validade e da exequibilidade da lei de fake news, independentemente da intenção de seus autores. Combater condutas abusivas não pode desconsiderar o dinamismo dos agentes na internet e engessar os mecanismos auto regulatórios que já são considerados e aplicados pelas plataformas. Fake news distorcem o ambiente de livre circulação de ideias, atrapalham o amadurecimento do debate público e corroem em diferentes proporções os níveis de tolerância na sociedade. No entanto, nem toda regulação estatal vale a pena, sobretudo quando a fake news for pequena.
*Izabela Patriota é doutoranda em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e diretora de Relações Internacionais do movimento Lola Brasil