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Pandemia e suas moradas

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Nestes 2 anos de pandemia que se completam neste mês de Março, para além da tragédia de milhões de nossos semelhantes que nos deixaram em decorrência do vírus Covid (19, 20, 21 e 22…), sequelas e mazelas econômicas, tais como inflação; sociais, como desigualdade no acesso às vacinas; e sanitárias, como o represamento do tratamento de doenças não infecciosas, como câncer, aumentam nossas perdas e dores às margens das estatísticas pandêmicas. E seguirão presentes mesmo quando Genebra nos disser que a guerra acabou…

Mas o aspecto desta tragédia que nos abateu há 2 anos – e oxalá esteja perto do fim – que gostaria de chamar a atenção é o engajamento inédito, pela proporção que teve e tem, da população no debate público sobre a condução das políticas públicas no enfrentamento à pandemia. Especialistas sobre o tema brotaram por todo lado; discussões acaloradas nos grupos de “whats” comeram soltas; brigas familiares sobre o tema não faltaram; e, em meio às cervejas e belisquetes nos botequins, entre uma retirada e colocada de máscara para molhar o bico e forrar o estômago, o assunto pandemia disputou lugar com a resenha do futebol e a corrida eleitoral.

Para quem é cientista vocacionado e de ofício, e não de ocasião, bem como para aqueles que se apoiam em material científico para sua tomada de decisão, como é o caso dos “doutores” que cuidam de pacientes, divergências são habituais e verdades absolutas e transitórias fazem parte do dia-a-dia. Medicina é pendular, advertia o mestre Marcio Malta nos congressos de ortopedia…

No entanto, o acirramento do debate ganhou espaço na retórica política. Líderes, mundo afora, lograram êxito ou amargaram derrotas eleitorais a partir de suas posições na condução da pandemia. De repente, a pesquisa científica foi engolida por outras pesquisas: a de opinião e a de intenção de votos. Cedemos o lugar da dialética e da analítica à retórica e, muitas vezes, à poética.

Como dito acima, divergir faz parte do universo científico. Mudar de ideia após reanálise é o dia-a-dia de quem cuida da saúde de alguém. Ter cautela faz parte de quem enfrenta um cenário absolutamente novo, em que o que não se sabe, a priori, supera o que é sabido. E mesmo pessoas qualificadas e, sinceramente, bem intencionadas podem pensar diferente sobre um mesmo tema e apontar soluções diametralmente opostas e, ainda assim, serem intelectualmente honestas. E mais: ambas podem estar certas ou erradas na sua tomada de decisão.

Tomemos como exemplo Noruega e Suécia, dois dos mais democráticos países do mundo segundo o índice da prestigiosa revista The Economist. Logo, não cabe como premissa para essa análise a pecha de “fascista”, “negacionista” ou “expansionista” como ponto de partida. As autoridades sanitárias norueguesas optaram por uma política de enfrentamento mais restritiva, com limitação de circulação de pessoas, interrupção de atividades presenciais escolares e uso obrigatório de máscaras. Já a terra da rainha Silvia (cuja mãe é brasileira) se posicionou de modo diverso: máscara para quem quiser; lugar de criança é na escola; e isolamento populacional irrestrito não adianta. Mas nem tudo foi discordância (veja bem, não confunda com desavença). Num tema sensível que é a vacinação infantil, ambos os países, após suas análises, consideraram que o risco benefício, por ora, não compensa e, de modo independente, técnico e, por que não dizer, democrático não recomendaram a aplicação nas crianças. Mas o fato curioso é que não houve acusações de inimigos da ciência a estes 2 países. Não estou dizendo que não houve críticas e discordâncias. E muito menos que a totalidade da comunidade científica dos países nórdicos concordou com essas tomadas de decisão. Mas respeitaram o pensamento em contrário…

Num tempo em que uma guerra invisível nos leva de modo concreto entes queridos, não precisamos de tensão adicional para seguir em frente. A dor da realidade indiscutível da morte já nos é um flagelo per se. De nada acrescenta de positivo o litígio com quem diverge neste ou naquele ponto da batalha. Se for verdade que sociedades civilizadas, avançadas, vizinhas e, acima de tudo democráticas, podem defender soluções distintas para um mesmo problema, resta certo que aqueles que acham que o melhor para a Noruega é isso e para a Suécia é aquilo, além de se respeitarem, não se atrevem a extrapolar suas convicções para realidades distintas das suas quando o assunto é condução da pandemia, pois sabem que cada um tem a sua. Se os romanos estavam certos em seu adágio “tutte le strade portano a Roma”, talvez os nórdicos também estejam ao nos darem a mensagem, quase bíblica, de que a democracia e a ciência possuem várias moradas.

Aviso

As opiniões contidas nos artigos nem sempre representam as posições editoriais do Boletim da Liberdade, tampouco de seus editores.

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