Racismo: crítica ou só lacração? - Coluna

Racismo: crítica ou só lacração?

15.07.2022 10:11

Um recente artigo de jornal acerca da escolha de homens brancos como alvos favoritos de piadas de sucesso nos nossos dias me conduziu ao canal Ledo Engano, onde o comediante Yuri Marçal satiriza relacionamentos amorosos, temas políticos e racismo. Bem popular, seu conteúdo foi licenciado a uma gigante do streaming, o que tornou a atração um fenômeno de massa, e Yuri um formador de opinião no Brasil atual.

No trailer de um episódio, o ator negro relata suas peripécias em Búzios, que, segundo Yuri, seria uma praia “elitista, onde você não vê muitos eus (sic)”. Estarrecida, interrompi o vídeo, pois, a menos que se sofra de transtorno de personalidade múltipla, o uso, no plural, de um pronome pessoal necessariamente singular já denota a incapacidade do comediante de reconhecer o próprio eu, e sua renúncia voluntária à individualidade inerente à sua condição humana. Será que o rapaz se enxerga como um inseto, mera engrenagem de uma coletividade homogênea, e sua identidade tão vazia, a ponto de ser partilhada com os outros eus pela pigmentação cutânea?

Em meio às elites frequentadoras da praia, Yuri teria encontrado um senhor por ele classificado como “muito branco” em obsessivas oito repetições da expressão, e que, ao deparar com o ator, teria calçado seus chinelos, demonstrando pânico de ser furtado pelo jovem. Curiosa a fixação do comediante nos tons de pele, no seu próprio, no dos demais eus, e no do outro, que, na percepção de Yuri, o teria julgado como um criminoso a priori, devido a diferenças étnicas.

O sarcasmo da piada revela duas categorias de humanos traçadas pelo ator, a dos eus e a dos outros (os muito brancos), como se fossem dois compartimentos estanques, incomunicáveis entre si, e cujas poucas interações seriam muito tensas, em virtude da desconfiança do segundo grupo em relação ao primeiro. Se, na ótica marxista, a História da humanidade é a da luta de classes, a adaptação dessa premissa por Yuri e pelo identitarismo de hoje nos conduz ao conflito permanente entre grupos raciais ou entre gêneros, como se fosse inviável o convívio entre membros isolados desses coletivos, a par da beligerância entre seus clãs.

O refrigério para tanta insanidade está nas linhas de Machado de Assis, escritas, ainda no Brasil escravagista, pelo mulato que se tornou um portentoso literato. No primeiro capítulo de Esaú e Jacó, o autor retrata a penosa subida ao Morro do Castelo, a pé, por duas senhoras da elite carioca, em busca das profecias da famosa Cabocla do Castelo sobre o destino dos filhos gêmeos de uma delas. E onde ficava o racismo, caro leitor? Na vergonha das damas ao percorrerem o calçamento falho da ladeira, nos véus e nos trajes cuja simplicidade forçada não conseguia disfarçar o seu donaire, e no uso apenas de seus nomes de batismo na visita à pitonisa. Sem empregar uma vez sequer a palavra “racismo”, o bruxo nos fornece claros indícios da distância social, racial, e econômica entre o morro e as ruas onde desfilava a fina flor da cidade.

Porém, como relações humanas são, acima de tudo, ambíguas, as ditas senhoras só viriam a encontrar conforto na profecia daquela cabocla, segundo a qual os gêmeos seriam felizes e grandiosos, embora brigassem desde o ventre. As previsões auspiciosas da mestiça moradora do morro despertaram tamanha euforia nas damas que a cabocla recebeu o quíntuplo de sua remuneração habitual, por mera liberalidade das consulentes. Naquele instante, esvaneceram-se os preconceitos, e surgiu um elo de empatia e gratidão no interior do oráculo, ainda que os seres envolvidos pertencessem a universos tão díspares.

Será que nosso círculo cultural seguirá optando por estereótipos como os de Yuri, farsescos em sua superficialidade, ou será que, em algum momento, retomaremos a investigação sobre os complexos matizes da alma humana, a exemplo do genial Machado? Coisas futuras…

Foto: Fernando Frazão/Agencia Brasil

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