"Notre-Dame e a mente utópica", por Ivan Albuquerque - Coluna Debate Aberto

“Notre-Dame e a mente utópica”, por Ivan Albuquerque

23.04.2019 11:05

POR IVAN ALBUQUERQUE*

A construção da Catedral de Notre-Dame – e de tantas outras catedrais – condenou o homem medieval à miséria por mais tempo?

Essa pergunta causa estranheza? Espero que sim. No entanto, diversos colunistas, brasileiros e estrangeiros, ao melhor estilo “analista de boteco”, formularam essa famigerada tese, enquanto os escombros da Catedral ainda estavam em chamas.

O argumento é simplório (faz sentido, diante de tal pensamento estapafúrdio): os recursos físicos e humanos alocados, durante os quase 200 anos do desenvolvimento da Catedral, seriam melhores empregados caso fossem alocados em causas sociais.

Ou seja, não bastasse o ímpeto em definir, via impostos robustos, como cada indivíduo deveria gastar o próprio dinheiro, socialistas de todos os matizes arrogam-se no direito de definir como nossos antepassados deveriam gastar seu tempo e seus recursos.

Além do viés distributivista e autoritário, o argumento parte do pressuposto que nada existe, além da realidade material. As necessidades materiais do homem seriam as únicas necessidades a serem supridas.

Leitor, perdoe a digressão. Mas a paleoantropologia – ciência que estuda os fósseis dos hominídeos e as evidências deixadas por eles – confere grande valor aos vestígios de antigos rituais realizados pelos hominídeos, sobretudo as evidências arqueológicas de que estes hominídeos, a partir de determinada momento, passaram a enterrar os mortos.

Hominídeos simples, parcos de recursos humanos e intelectuais, empregaram suas vidas para realizar atividades que, do ponto de vista material, faz pouquíssimo sentido.

Seja na construção da Catedral, seja enterrando os mortos, existe certa regularidade na atividade humana. Nos lugares mais remotos, mesmo reduzidos às condições mais primitivas da existência, o homem parece ser atraído para algo que traga sentido à realidade terrena, que nos conecte com o sagrado.

Seja na construção da Catedral, seja enterrando os mortos, existe certa regularidade na atividade humana. Nos lugares mais remotos, mesmo reduzidos às condições mais primitivas da existência, o homem parece ser atraído para algo que traga sentido à realidade terrena, que nos conecte com o sagrado.

Apenas a mente utópica (sob o viés marxista) acredita que as necessidades materiais têm prevalência em relação aos outros âmbitos que compõem a existência humana.

O homem do século XXI está prestes a superar a extrema pobreza e a fome, este processo ocorreu a despeito da construção de templos e catedrais ou da realização de enterros? Parece-me razoável defender que não o homem, em toda a sua completude, tornou possível essas conquistas.

O incêndio ocorrido, segunda-feira, dia 15 de abril, consumiu não uma mera “obra de arte” do passado, mas o resultado de nossa inescapável humanidade: a tentativa de alcançar aquilo que escapa completamente à linguagem e à razão humana.

*Formado em ciências sociais pela FGV/RJ. Mestre em sociologia pela PUC/RJ. 

FALE COM O BOLETIM

Jornalismo: jornalismo@boletimdaliberdade.com.br

Comercial: comercial@boletimdaliberdade.com.br

Jurídico: juridico@boletimdaliberdade.com.br

Assinatura: assinatura@boletimdaliberdade.com.br